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Cenário pós Pandemia - por Yuval Harari. O que acontece quando todos trabalham em casa e se comunicam apenas à distância?

  • 01 de abril de 2020

Considerado a voz do bom senso até pelos poderosos do Vale do Silício, Harari mantém seu trabalho de futurologia consistente. Em um artigo publicado pelo jornal inglês Financial Times na última sexta-feira (20), o autor tratou do cenário global pós-pandemia — e não foi tão pessimista quanto a maioria de nós tem sido perante uma crise global como essa, sem precedentes. Aqui, resumimos as apostas do historiador sobre o impacto do novo coronavírus para a humanidade.

Sim, tudo vai mudar — já está mudando. Para Harari, a mobilização global em torno da covid-19 não terá implicações apenas na forma como organizamos nossos sistemas de saúde, mas também deve moldar a maneira como estruturamos a economia, a política e a cultura para o futuro — tudo isso com base em decisões rápidas e emergenciais, tomadas em meio àquela que (com sorte) será a maior crise vista pela nossa geração. “Ao escolher entre alternativas, devemos nos perguntar não apenas como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos quando a tempestade passar. Sim, a tempestade passará, a humanidade sobreviverá, a maioria de nós ainda estará viva — mas habitaremos um mundo diferente”, explica. A natureza de emergências como a do novo coronavírus, diz o autor, fazem com que processos históricos avancem muito rapidamente. “As decisões que em tempos normais podem levar anos de deliberação são aprovadas em questão de horas. Tecnologias imaturas e até perigosas são colocadas em serviço porque os riscos de não fazer nada são maiores. Países inteiros servem como cobaias em experimentos sociais em larga escala. O que acontece quando todos trabalham em casa e se comunicam apenas à distância? O que acontece quando escolas e universidades inteiras ficam online? Em tempos normais, governos, empresas e conselhos educacionais nunca concordariam em realizar tais experimentos. Mas esses não são tempos normais”, conclui.

Vigilância ‘sobre a pele’ X ‘sob a pele’ são bem diferentes. No auge da crise, Harari acredita que a humanidade será exposta a alguns dilemas éticos importantes. O primeiro seria escolher entre vigiar a população de forma totalitária — já que esta é a primeira vez na história da humanidade em que a tecnologia permite monitorar todos o tempo todo — ou empoderar o público com boa informação como forma de preservar vidas. Se o monitoramento de cidadãos por câmeras, drones e algoritmos que fazem parte do nosso dia a dia já parece coisa de ficção científica, o autor lembra que a pandemia poderia abrir um precedente perfeito para que governos monitorem a saúde de cada indivíduo (e sob a pele), controlando dados como pressão arterial, temperatura corporal e histórico médico, sob o pretexto de conter a disseminação dessa epidemia ou evitar situações semelhantes ao surto de COVID-19 no futuro.

“Se as empresas e os governos começarem a coletar nossos dados biométricos em massa, eles podem nos conhecer muito melhor do que nós mesmos, e podem não apenas prever nossos gostos e sentimentos, mas também manipular o que sentimos para vender o que quiserem — seja um produto ou um político.” Aos entusiastas da vigilância biométrica como medida temporária tomada durante um estado de emergência, Harari lembra que medidas temporárias têm o hábito desagradável de superar as emergências: “Meu país natal, Israel, por exemplo, declarou estado de emergência durante a Guerra da Independência de 1948, que justificava uma série de medidas temporárias, desde censura à imprensa e confisco de terras a regulamentos especiais para fazer pudim (não estou brincando). A Guerra da Independência está vencida há muito tempo, mas Israel nunca declarou a emergência encerrada, e falhou em abolir muitas das medidas ‘temporárias’ de 1948 (o decreto de pudim de emergência foi misericordiosamente abolido em 2011).”

Privacidade é sinônimo de segurança. Para o autor, a crise do coronavírus pode ser o ponto de inflexão da batalha pelos nossos próprios dados, porque quando as pessoas precisam escolher entre privacidade e saúde, geralmente escolhem a saúde. A escolha mais acertada que os líderes políticos podem fazer nesse momento é a de munir os cidadãos de informações corretas, com embasamento científico, para que cada um cuide da própria saúde — como estamos fazendo até aqui. “O monitoramento centralizado e punições severas não são a única maneira de fazer as pessoas cumprirem diretrizes benéficas. Quando as pessoas são informadas dos fatos científicos e quando elas confiam nas autoridades públicas para lhes contar esses fatos, os cidadãos podem fazer a coisa certa mesmo sem um Big Brother vigiando seus ombros. Uma população motivada e bem informada é geralmente muito mais poderosa e eficaz do que uma população ignorada e policiada”, explica Harari. “Considere, por exemplo, lavar as mãos com sabão. Este foi um dos maiores avanços de todos os tempos na higiene humana. Essa ação simples salva milhões de vidas todos os anos. Embora tomemos como gesto banal, foi apenas no século 19 que os cientistas descobriram a importância de lavar as mãos com sabão. Antes, mesmo médicos e enfermeiros passavam de uma operação cirúrgica para outra sem lavar as mãos. Hoje, bilhões de pessoas lavam as mãos diariamente — não porque têm medo da polícia, mas porque entendem os fatos. Lavo minhas mãos com sabão porque ouvi falar de vírus e bactérias, entendo que esses pequenos organismos causam doenças e sei que o sabão pode removê-las.”

E se a autoridade não confia na ciência? Harari lembra em sua análise que, para atingir um nível global de conformidade e cooperação análogo ao hábito cotidiano de lavar as mãos, precisamos confiar na ciência, nas autoridades públicas e na mídia. “Nos últimos anos, políticos irresponsáveis minaram deliberadamente a confiança na ciência, nas autoridades públicas e na mídia. Agora, esses mesmos políticos irresponsáveis podem ficar tentados a seguir o caminho do autoritarismo, argumentando que você simplesmente não pode confiar na mídia ou na ciência para fazer a coisa certa. Normalmente, a confiança que foi corroída por anos não pode ser reconstruída da noite para o dia — mas estes não são tempos normais. Em um momento de crise, as mentes também podem mudar rapidamente. Você pode ter discussões amargas com seus irmãos por anos, mas quando ocorre uma emergência, você descobre subitamente um reservatório oculto de confiança e amizade e se apressa para ajudar ao outro. Em vez de construir um regime de vigilância, não é tarde demais para recuperar a confiança das pessoas na ciência, nas autoridades públicas e na mídia. Definitivamente, também devemos fazer uso de novas tecnologias, mas essas tecnologias devem capacitar os cidadãos. Sou totalmente a favor de monitorar a temperatura corporal e a pressão sanguínea, mas esses dados não devem ser usados para criar um governo todo-poderoso. Em vez disso, esses dados devem permitir que eu faça escolhas pessoais mais bem-informadas e também responsabilize o governo por suas decisões.”

Precisamos de um plano global. Na visão do historiador, a epidemia de covid-19 é um grande teste global de cidadania. “Nos próximos dias, cada um de nós deve optar por confiar em dados científicos e especialistas em saúde em detrimento de teorias infundadas da conspiração e de políticos que servem a si mesmos. Se não conseguirmos fazer a escolha certa, poderemos manter nossas liberdades mais preciosas — essa é, possivelmente, a única maneira de proteger nossa saúde de verdade”, afirma. Outro dilema ético decisivo para a humanidade, de acordo com ele, seria optar entre isolamento nacionalista e solidariedade global para superar os efeitos da pandemia em todos os setores sociais. “Um coronavírus na China e um coronavírus nos EUA não podem trocar dicas sobre como infectar humanos. Mas a China pode ensinar aos EUA muitas lições valiosas sobre o coronavírus e como lidar com isso. O que um médico italiano descobre em Milão no início da manhã pode muito bem salvar vidas em Teerã à noite. Quando o governo do Reino Unido hesita entre várias políticas, pode obter conselhos dos coreanos que já enfrentaram um dilema semelhante há um mês. Mas, para que isso aconteça, precisamos de um espírito de cooperação e confiança global”, completa, e lembra que os países devem estar dispostos a compartilhar informações de maneira aberta e humilde, procurar aconselhamento uns dos outros e confiar nos dados e nas ideias que recebem para superar, com o menor estrago possível, uma crise dessa proporção — e desse ineditismo.

Por Luiza Sahd, Do TAB

 

   
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