Algumas premissas
Considerando algumas discussões que envolvem a proposta de reforma administrativa, é necessário, antes de qualquer discussão sobre a PEC 32/2020, ter claro o alcance da proposta de reforma administrativa, além de algumas informações que julgo pertinentes.
Em primeiro lugar, é uma deslavada mentira a declaração do presidente Bolsonaro quanto às consequência da PEC 32/2020 em relação ao conjunto dos servidores existentes, dada em 31 de agosto, onde ele diz “que fique bem claro: não atingirá nenhum dos atuais servidores. Ela se aplicará apenas aos futuros servidores concursados”. Desde o início do mandato que é difícil acreditar em qualquer declaração do presidente, ou mesmo de seu ministro da Economia, que a cada momento dá informações e dados que, ou são desmentidos, ou simplesmente não se confirmam. A reforma administrativa atinge, sim, os atuais servidores ativos, aposentados e pensionistas. A razão do discurso é óbvia e bem articulada. O presidente declara, a base de apoio no parlamento repete e a grande mídia reproduz o dito por todos. Tudo combinado para evitar reações da representação dos servidores e dificuldades políticas nas bases dos parlamentares governistas em ano eleitoral. Alguns desses parlamentares, inclusive, declaram que tiveram alguma influência na decisão do presidente para defender os atuais servidores. Uma questão simples: se os atuais servidores precisam ser defendidos, significa que há ataques e que os futuros terão um tratamento pior que o dos atuais?
Em segundo lugar, a PEC 32/2020 não é uma proposta para servidores federais e que os estaduais e municipais seriam tratados posteriormente, como foi na reforma previdenciária. Basta observar as alterações propostas para os artigos 37 a 41, que tratam da administração pública das três esferas de governo. Ou seja, uma vez aprovada, absolutamente toda a administração pública, federal, estadual, distrital e municipal, seria atingida, incluindo seus servidores.
Em terceiro lugar, também não é verdade que uma proposta de emenda à Constituição assinada pelo presidente da república não poderia incluir os “membros de Poder”, onde se enquadram os magistrados, promotores e procuradores do Ministério Público, por exemplo. Basta ver a Emenda Constitucional 19/1998 (reforma administrativa que a PEC 32/2020 pretende dar continuidade) e, mais recentemente, a Emenda Constitucional 103/19 (reforma previdenciária). A não inclusão dos Membros de Poder foi um decisão política, não técnica, e com dois objetivos. O primeiro, é não indispor o chefe do Executivo federal com quem pode ajudá-lo, ou não, em situações futuras. Parlamentares, caso queiram, que o façam. E alguns parlamentares dizem que os incluirão, que seria para tratar de forma isonômica todos os servidores do Estado. O segundo objetivo é angariar apoio à proposta global, que prejudica, e muito, o conjunto dos servidores e a população com o desmonte dos serviços públicos. Seria para chamar atenção para uma questão que não é o eixo principal da reforma. Além de que, não há garantias quanto à inclusão desse segmento no texto final. Basta vermos quem é a maioria dos parlamentares que defendem, cínica e demagogicamente, essa inclusão, todos conservadores e defensores da reforma. Por que esses mesmos deputados não defendem os demais servidores nem buscam impedir a privatização do serviço público? Bom, vamos ao objetivo do artigo.
Os atuais servidores
O RJU
A proposta de criação de novas formas de relação entre o Estado e as pessoas que trabalharão na administração pública prevê a regência por um novo regime jurídico de pessoal exclusivo para os novos vínculos. Os atuais servidores seriam abrangidos por regime jurídico específico a ser criado após a promulgação da nova Emenda Constitucional. Em se confirmando, alguns poucos dos atuais cargos deverão ser transformados em “cargos típicos de Estado”, mais uma vez dando uma interpretação que considero errada do que seria um cargo que exerce uma atividade típica de Estado. Na proposta de alteração constitucional pretende se dar tratamento de “exclusivo de Estado”, mas chamando de “típico de Estado”. Apesar de parecer, não se trata de mera nomenclatura, mas de, a partir da alteração proposta, ignorar todas as demais atividades públicas que necessitam da proteção do Estado, como se não fossem típicas de Estado, as considerando como passíveis de descarte.
Cargos em extinção
Todos os cargos, que não os sobreviventes da disputa que se dará a partir da apresentação do Projeto de Lei Complementar que trará “os critérios para definição de cargos típicos de Estado”, estarão, a partir da nova legislação a ser aprovada, em situação de extinção, ainda que não expressamente dito. Isso, porque, por mais que algumas pessoas não concordem, não havendo mais concursos para esses cargos, os mesmos serão extintos à medida que aposentem os últimos ocupantes de cada cargo. Isso significa diminuição gradativa do poder de pressão dos ocupantes desses cargos, principalmente a partir do momento em que a balança pender para maioria de aposentados em relação aos ativos, o que dificultaria, não só a conquista de algum ganho ou direito, mas até a manutenção de algum existente, como veremos adiante. Acrescentemos a já declarada intenção de redução drástica dos números de cargos e de carreiras hoje existentes na administração pública, que se pretende reduzir, só no Executivo federal, das atuais 117 carreiras para algo em torno de 20 ou 30 carreiras, diminuindo ao máximo também os pouco mais de 2.000 cargos hoje existentes na administração federal. Isso se daria a partir da fusão ou simples extinção de cargos. Dentro desse processo está a criação (ou recriação) do chamado carreirão, unificando todos os cargos da área administrativa, o que deve acontecer na chamada “Segunda Fase da Reforma Administrativa”, onde será apresentado o projeto de lei (PL) de “consolidação de cargos e funções”, juntamente com outros PLs, de “diretrizes de carreiras” e de “ajuste no Estatuto do servidor”. Ali estaria definido o futuro dos atuais servidores. A norma herdeira dos servidores do atual RJU sairá desse conjunto de PLs. As leis decorrentes desse processo dirão como serão tratados os remanescentes do “antigo RJU”, os direitos a que terão acesso, mais os deveres, obrigações e limites daquele momento em diante. Ressalto que não haverá mais ingressos nesses cargos.
O que já podemos ver a partir da PEC 32/2020
Estabilidade
Em relação à estabilidade, os atuais servidores terão o mesmo tratamento dos futuros ocupantes de cargos típicos de Estado, podendo perder o cargo nas mesmas três condições (I – decisão judicial; II – processo administrativo disciplinar e III – avaliação de desempenho insuficiente). Sobre isso, algumas observações:
1 – Em caso de demissão por decisão judicial, até a possível aprovação da PEC, é necessário que a decisão judicial transite em julgado. Se aprovada a PEC, bastará uma decisão por órgão judicial colegiado. Ainda que possa haver reversão até o fim do processo;
2 – A regulamentação da demissão por desempenho insuficiente, prevista hoje pela Constituição através de lei complementar, passa a ser por lei ordinária. Dessa forma a aprovação da lei passa a ser por maioria simples dos presentes em plenário, quórum bem menor que a maioria absoluta dos votos necessários no caso de lei complementar.
3 – Os atuais servidores também podem perder o cargo pela possiblidade prevista no artigo 169, parágrafo 4º da Constituição, que permite a demissão de servidores estáveis pelas limitações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, o que não está previsto para os futuros ocupantes de cargos típicos de Estado.
4 – Para a aquisição da estabilidade, dos atuais que ainda não a adquiriram, será necessária aprovação por comissão instituída para essa finalidade.
Remuneração
De início a PEC não altera a remuneração dos atuais servidores, que já está congelada há alguns anos. Considerando que a proposta de reforma é composta por três fases, onde a PEC 32/2020 é a primeira, a remuneração dos atuais servidores deverá ser afetada nas etapas seguintes, como, inclusive, já anunciado pela equipe do Ministério da Economia. Em uma das etapas deverá ser apresentado o projeto com grande redução no quantitativo dos atuais cargos e carreiras (já mencionado acima). Nesse processo as tabelas serão reestruturadas com algumas mudanças significativas, que serão:
– Remuneração com a parte principal vinculada à avaliação de desempenho, o que permite diferenciar servidores de um mesmo cargo e desvincula ativos de aposentados e pensionistas;
– Progressão e promoção exclusivamente por avaliação de desempenho, não mais por tempo de serviço (já incluído na PEC), e o aumento de interstício (tempo em que cada servidor passa em um determinado patamar, ou padrão, da tabela remuneratória). Isso significa a possibilidade de evolução mais lenta na carreira, ou ainda de estacionamento em algum ponto da tabela remuneratória. Há o risco da pessoa aposentar sem atingir o topo da tabela remuneratória.
Mobilidade
Com a redução de cargos e carreiras, os atuais servidores farão parte de uma nova estrutura, um quadro geral, sendo possível a mobilidade, permitindo a remoção de servidores de um órgão para outro por decisão unilateral da administração.
Em caso de algum órgão público ser objeto de gestão por desempenho, resultando em parceria com organização de direito privado, que assumiria a gestão do órgão, os atuais servidores que lá estejam lotados serão cedidos à nova administração (privada). Em caso de devolução de servidor à administração pública o servidor deverá ser posto à disposição do órgão gestor de pessoas (vide observação 2, abaixo), que providenciaria nova lotação para o servidor.
Demissão por desempenho insuficiente
Pela proposta apresentada, os critérios de avaliação de desempenho, ao serem definidos em leis ordinárias, indicada por cada Poder ou ente federativo (estados e municípios), há o risco de grande fragilidade e manipulação política.
Redução de jornada/remuneração
Como já dito antes, a reforma do Estado não se resume à PEC 32/2020. Dessa forma, os atuais servidores correm o risco de sofrerem redução da jornada de trabalho com a respectiva redução salarial, com base na PEC 188/2019, já em tramitação no Senado.
Acumulação de cargos
Para os atuais servidores está mantido o direito à acumulação vigente, sendo dois cargos de professor, um de professor com outro técnico ou científico ou dois cargos ou empregos privativos de profissões regulamentadas de saúde. Diferente dos novos servidores.
Fim da reserva de vagas em cargos de direção e assessoramento
A partir da PEC 32/2020, os novos cargos de “liderança e assessoramento” substituirão gradativamente os atuais cargos de direção e assessoramento, inclusive os ocupados atualmente por servidores efetivos. Como os novos cargos exercerão atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas (o que considero inconstitucional), existe a grande possibilidade de convívio com os atuais servidores no exercício de uma mesma atividade. A substituição citada obedecerá critérios do chefe de cada Poder, o que pode gerar problemas de origem política.
Vantagens, direitos e benefícios
Com a alegação de uniformizar entre os três Poderes e as três esferas de governo, foram listados 10 tipos de vantagens e benefícios que não mais serão concedidos a servidores públicos (atuais e novos). Apenas aquelas vantagens ou benefícios em vigor e que tenham sido concedidos por lei vigente até 31 de agosto de 2020, poderão ser mantidos, não podendo, entretanto, progredir, como é o caso, por exemplo, de adicionais por tempo de serviço, ou assemelhados. A maioria dos servidores já não fazem jus à maior parte dessas vantagens e benefícios, a não ser em alguma unidades da Federação. As vantagens e benefícios abrangidos são:
● licença-prêmio
● aumentos retroativos (ainda que resultado de negociação entre entidades representantes dos servidores e a administração pública)
● férias superiores a 30 dias/ano, incluindo recesso
● adicional por tempo de serviço, com qualquer formato ou denominação
● aposentadoria compulsória como punição
● parcelas indenizatórias sem previsão legal
● adicional ou indenização por substituição não efetiva
● redução de jornada sem redução de remuneração, salvo por saúde, respaldado em lei
● progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço (citado acima)
● incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções.
Ao se confirmar a substituição dos regimes jurídicos vigentes por novos regimes jurídicos específicos para os atuais servidores, desaparecem todos os direitos, vantagens e benefícios constantes das legislações substituídas que não constarem da Constituição Federal. Com isso, a menos que constem da nova legislação, perdem eficácia diversas verbas de caráter indenizatório, gratificações e direitos a afastamentos e licenças remuneradas.
Algumas observações
1 – Como algumas alterações em normas vigentes não dependem de emenda constitucional, essas poderão ser encaminhadas ainda durante a tramitação da PEC32/2020. Entre os assuntos que teriam esse tratamento estão a demissão por mau desempenho, o novo modelo de avaliação e o fim da progressão por tempo de serviço. Isso por não serem considerados como direito adquirido.
2 – Está em discussão entre a equipe de governo responsável pela PEC 32/2020 e “especialistas convidados a opinar”, a criação de um órgão independente (no formato de agência reguladora), composto por representantes da administração pública e da sociedade civil. Esse novo órgão, que deverá ser criado na esfera federal, nos estados, no Distrito Federal e nos municípios, trataria dos critérios de avaliação de desempenho, reajustes remuneratórios, premiações, entre outros pontos. No caso federal, por exemplo, esse órgão seria presidido por uma pessoa indicada pelo presidente e aprovado pelo Congresso. O que deverá ser sugerido como modelo aos entes da Federação. Nenhuma menção à presença de especialistas em gestão de pessoas.
O que consta desse artigo não significa que se resumem a essas as alterações que atingirão os atuais servidores. Várias outras questões estão em discussão, algumas já em processo de elaboração de novas normas. É importante o acompanhamento permanente das entidades que representam os servidores públicos. Lembro que o resultado, caso essas alterações se confirmem, atingirá tanto servidores quanto usuários do serviço público.
E “alguém” ainda tem a desfaçatez de dizer que a reforma “não atingirá nenhum dos atuais servidores”.
Vladimir Nepomuceno é assessor e consultor de entidades sindicais e diretor da Insight Assessoria Parlamentar. É servidor público federal aposentado, tendo atuado como dirigente sindical desde a década de 80 até 2003, com destaque no serviço público. Foi diretor do DIEESE/DF e DIAP. Participou dos governos Lula e Dilma em várias frentes, podendo ser destacado o Ministério do Planejamento, onde atuou como Diretor de Relações de Trabalho, participando do processo negocial com entidades representativas de servidores públicos. Participou também da direção da Funai como Diretor Administrativo e do Ministério da Fazenda como Superintendente de Administração em Brasília. Atualmente acompanha as questões gerais e sociais dos trabalhadores, com destaque para o serviço público junto ao Congresso Nacional e em outras frentes.
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