Em decisão proferida na sessão plenária do último dia 10 de agosto, a Suprema Corte Brasileira, fechando os olhos e os ouvidos para os mandamentos ditados pela Constituição Federal, assinou a sentença de morte da Lei da Ficha Limpa – Lei Complementar n. 135/2010 e, de quebra, ainda retirou dos Tribunais de Contas a ferramenta mais importante para o exercício de sua missão constitucional de fiscalizar a boa aplicação dos recursos públicos.
Na fatídica quarta-feira (10), ao realizar o julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários 848826 e 729744, o Plenário do STF decidiu, por seis votos a cinco, que a competência para julgamento das contas dos prefeitos, sejam elas de governo ou de gestão, recai exclusivamente sobre as Câmaras Municipais, cabendo aos Tribunais de Contas desempenhar o papel de singelo coadjuvante no auxílio ao Poder Legislativo, limitando-se à emissão de parecer prévio e opinativo, ainda que este só deixe de prevalecer pela decisão proferida por dois terços dos vereadores da respectiva Casa de Leis.
Para o Ministro Ricardo Lewandowsky, autor da tese vencedora no RE 848826, os vereadores detêm o direito de julgar as contas do Chefe do Executivo Municipal porque foram eleitos para representar os cidadãos. Manifestando entendimento diverso, o Ministro Luis Roberto Barroso, relator do recurso, considerou que a competência para o julgamento deve ser atribuída em função da natureza das contas prestadas e não do cargo ocupado pelo administrador; ou seja, se as contas forem de governo, compete às câmaras julgá-las; se de gestão, a atribuição recai somente aos Tribunais de Contas, cabendo-lhes examinar e julgar todos os recursos administrativos das contas de gestão.
No julgamento do Recurso 729744, o voto da maioria dos ministros decidiu pela impossibilidade de incidência da inelegibilidade prevista no artigo 1.º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar n.º 64/1990 – Lei de Ficha Limpa –, nos casos de omissão das câmaras em julgar as contas dos prefeitos após o parecer desfavorável emitido pelos Tribunais de Contas, inclusive da Corte de Contas da União.
Na prática, o que houve não foi nada mais do que um salvo-conduto, dado pela mais alta corte da justiça brasileira, para que prefeitos mal intencionados e descompromissados com as regras que regem a boa administração, possam passar incólumes à toda sorte de irregularidades e ilegalidades praticadas durante gestões irresponsáveis.
Isto porque, ao conceder exclusividade ao Poder Legislativo para julgar as contas dos prefeitos, o STF enterra de vez todo know-how adquirido pelos Tribunais de Contas, ao longo de 28 anos, para fiscalizar e julgar, segundo critérios legais, contábeis e regulamentares, os atos de governo e de gestão praticados pelos prefeitos municipais. E o que é mais grave: transfere essa tarefa a um órgão que não dispõe de estrutura e recursos necessários e, com o devido respeito, na maioria dos municípios brasileiros, é composto por membros que não detém conhecimentos mínimos e fundamentais para desempenhar essa importante missão.
O resultado disso será a transformação de todas as casas de leis do país em barulhentos balcões de negócio, onde ocorrerão todo tipo de barganhas políticas e negociatas eleitorais. Toda irregularidade terá sua etiqueta de preço. E, à medida em que as eleições se aproximarem, os valores serão remarcados segundo à ótica perversa da inflação ditada pela economia do mercado eleitoral.
Apenas para que se tenha ideia, disposições legais como a prevista no art. 5.º, incisos I, III, e IV da Lei de Crimes Fiscais, que configura como infração contra as leis de finanças públicas, deixar de divulgar ou enviar ao Tribunal de Contas o relatório de gestão fiscal, nos prazos estabelecidos em lei; ou a que é ditada pelo artigo 27 da lei Complementar n. 141/2012, que impõe ao órgão de controle interno do ente beneficiário e do ente transferidor o dever de dar ciência ao Tribunal de Contas, quando detectarem desvios na aplicação de recursos vinculados ao mínimo da saúde; se tornarão completamente inócuas, deixando as portas escancaradas para a ação de malfeitores do dinheiro público.
Parece-nos claro, ainda que assim não tenha sido para o STF, que desvios dessa natureza exigem resposta técnica, enérgica e tempestiva dos Tribunais de Contas, enquanto órgãos de controle externo, sob pena de se permitir a instauração de uma situação de impunidade generalizada na administração pública dos municípios brasileiros.
Os ministros do STF enxergaram o invisível. Não há, na Seção IX, do Capítulo I, do Título IV, da CF/88, que dispõe sobre a “Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária” a cargo do controle externo, quaisquer disposições que confiram às Casas Legislativas competência para determinar o ressarcimento do dano ao erário e aplicar multa, muito menos julgar contas de gestão de qualquer agente público ou privado que causar prejuízo ao erário. Essas são atribuições e medidas cabíveis aos Tribunais de Contas que, desde a promulgação da CF/88, vêm acumulando experiência, conhecimento e qualificação técnica para fazê-lo, segundo os ditames estritos da legalidade.
Para a desgraça de milhões de brasileiros, a prevalecer o entendimento manifestado pelo STF, o que se verá é o inevitável enfraquecimento da efetividade do controle externo, dos instrumentos de proteção do patrimônio público, e a redução substancial da Lei da Ficha Limpa, uma vez que, conforme dados fornecidos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 86% dos casos de inelegibilidade referem-se à rejeição de contas pelos Tribunais de Contas, órgão que vem ganhando destaque no cenário nacional, pois como revelou recente pesquisa realizada pelo IBOPE, 90% dos entrevistados reconhecem as Cortes de Contas com papel essencial no combate à corrupção.
Em época de olimpíada, seria a medalha de ouro dada ao atleta flagrado no exame antidoping. É o fim do 'fair play', da competição justa. É a derrota acachapante da democracia no Brasil.
Confira aqui o vídeo do presidente do Tribunal de Contas do Paraná, Ivan Lelis Bonilha, sendo entrevistado a respeito deste assunto.
Fonte.
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