O Museu Nacional, instituição integrante da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi fundado por Dom João VI em 06 de junho de 1818, com o objetivo de difundir o estudo das ciências naturais em território brasileiro. Atualmente, sua atividade é voltada à pesquisa em história natural e antropólogica.
Antiga sede do Brasil imperial e residência da família real, o Museu comportava, entre duas milhões de peças, presentes recebidos por dom Pedro II, como a múmia Sha-amun-em-su, cantora-sacerdotisa que teria vivido em 750 a.C. no Antigo Egito, e afrescos de Pompeia, cidade italiana petrificada por uma erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C.
Recentemente, o Museu completou 200 anos e foi negligenciado pelo Ministro da Cultura, que faltou à cerimônia de aniversário. No dia 02/09, um incêndio consumiu o prédio histórico e grande parte do seu acervo. Além das peças citadas, foi destruído pelas chamas o fóssil humano mais antigo das Américas, Luzia, mulher que teria vivido há 11.500 anos, e que teve seu esqueleto descoberto em Lagoa Santa (MG).
Segundo matéria publicada em El País:
Um museu atua em três frentes. Oferece um olhar para o passado, ou seja, um parâmetro para medir mudanças, uma escala de tempo. Também educa, no presente, sobre o mundo que nos rodeia, tanto o físico como o das ideias. E, principalmente, cria oportunidades para resolver problemas que ainda não somos capazes nem de imaginar. Ou seja: abre portas para o futuro desconhecido. E esse potencial, como é imprevisível, é sem dúvida a mais tremenda das perdas que sofremos no domingo passado.
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Fechou-se repentinamente a porta para futuras descobertas desse tipo, que poderiam ter saído do incalculável patrimônio científico do museu. As políticas mesquinhas dos sucessivos Governos − cada um agravando uma situação que já era insustentável − em relação ao patrimônio só podem ser fruto de uma ignorância superlativa combinada com interesses legalmente turvos. Mas, na verdade, isso não está muito distante de outros episódios como a recente anistia aos destruidores da selva, a impunidade diante da catástrofe ambiental no Rio Doce e o abandono de museus e edifícios históricos, que já causou o incêndio que destruiu em 2010 a coleção do Instituto Butantan, que é responsável pela maior parte dos antídotos contra veneno usados no Brasil.
Em um museu de ciências podemos aprender as semelhanças e diferenças entre os humanos e outras espécies de primatas, ou que nosso corpo contém tanta quantidade de microrganismos (principalmente bactérias, sem muitas das quais morreríamos), que eles equivalem em número às nossas próprias células. É o lugar onde nossos filhos podem aprender que o ovo evoluiu milhões de anos antes que a galinha. Onde os descendentes do povo Wari’ podem ir para entender como viviam seus parentes poucas gerações atrás. É onde aprendemos de forma intuitiva nossa insignificância no universo. No domingo, entretanto, aprendemos nossa insignificância no Brasil. Juntamente com o Museu Nacional ardeu muita da nossa memória, nosso presente ficou mutilado e nos roubaram um futuro que agora nunca conheceremos.
O jornalista José Francisco Botelho, colunista da Revista Veja, refletiu sobre a tragédia, nestes termos:
O que as chamas do Museu Nacional horrivelmente iluminam não é uma efígie nem uma sigla, mas as feições de uma doença espiritual – a mazela, o desnorteio e a incúria que nos impedem de conservar um dos patrimônios mais extraordinários do mundo.
Há décadas lavra-se no Brasil uma guerra inominada e ecumênica contra nosso legado artístico e histórico.
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A imagem de Dom Pedro II recortado nas labaredas, como que descendo aos infernos, é um convite quase irresistível ao desespero [...]. Nossa cultura vale mais que o pandemônio e o palanque. Para apagar o incêndio de nossa cultura, é preciso encará-la como um fim em si mesma e lhe conferir uma defesa à altura do que realmente é: um patrimônio inestimável de toda humanidade.
Ocasionado pela inadequação do prédio, que não dispunha de certificado do Corpo de Bombeiros, e pela limitação orçamentária que impossibilitou a implementação de medidas de prevenção de riscos de incêndio tempestivamente, o incêndio se alastrou rapidamente. Alunos e professores da Universidade tentaram salvar parte do próprio acervo de pesquisa guardado no prédio, após a divulgação da ocorrência nas redes sociais.
No 1º Prefácio de sua obra Macunaíma, Mário de Andrade (1926) explicou a natureza do seu herói "sem nenhum caráter" e sua sátira ao Brasil: "O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente ou consciência de séculos, o certo é que esses uns têm caráter". Caráter, neste contexto, entendido como qualidade inerente, modo específico de sentir e agir de um povo.
É possível relacionar a identidade de um país com a sua memória coletiva e individual. Isto é, a preservação de sua identidade cultural transita pela conservação de seu patrimônio histórico e cultural, o que fortalece o sentimento de pertencimento e o próprio exercício da cidadania (PELEGRINI, 2006).
Mário de Andrade, preocupado com a identidade nacional dos brasileiros e autor do Anteprojeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN), destacou em sua sátira a 'gatunagem' e o 'desapreço à cultura verdadeira'. Neste ínterim, cabe refletir sobre em que medida a crise moral e ética instalada nos níveis estadual (RJ) e federal colaborou para a destruição do patrimônio cultural e histórico (etnográfico, científico, etc.) instalado no Museu Nacional.
O desinteresse do povo brasileiro pela própria história, e o contingenciamento de verbas para a execução de políticas públicas voltadas à preservação do patrimônio histórico e cultural corroboram, de certa forma, a divisão na sociedade. A recuperação dessa história, por outro lado, pode (re)construir uma identidade nacional, preservada a diversidade cultural no nível local, nas comunidades. E a população, mais consciente da importância desse patrimônio, poderá também atuar para protegê-lo.
Talita S. Gherardi
Diretora de Divulgação e Eventos
Referências:
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. (Coleção Clássicos para Todos)
CARVALHO, Antônio Carlos de. Preservação do patrimônio histórico no Brasil: estratégias. Revista Museologia e Patrimônio, vol. 4, n. 1 (2011). Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/195/158. Acesso em: 09/09/2018.
PELEGRINI, Sandra C. A.. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental. Rev. Bras. Hist., São Paulo , v. 26, n. 51, p. 115-140, June 2006 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000100007&lng=en&nrm=iso>. access on 09 Sept. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882006000100007.
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