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Internet das Coisas: novas tecnologias, velhos conflitos tributários

  • 05 de julho de 2018

Movimentos internacionais vêm sugerindo que ambiente de IoT exigiria a criação de modelos de tributação inovadores

Abordaremos neste texto como algumas das velhas discussões envolvendo o conflito de competência entre estados e municípios podem representar um relevante obstáculo ao desenvolvimento do ambiente de IoT.

Não é de hoje que estados e municípios pleiteiam a competência para tributar determinadas situações jurídicas, de modo que os contribuintes veem-se, constantemente, em meio a disputas que culminam em uma múltipla incidência de tributos, de várias esferas, gerando-se enorme insegurança jurídica.

Nesse contexto, pode ser destacada a tributação dos softwares que, atualmente, está sob enfoque diante de recentes edições de atos estaduais e municipais. Essa discussão é antiga e, por certo tempo, parecia ter sido solucionada pelo Poder Judiciário. Com os avanços tecnológicos e o fim da mídia física, no entanto, a matéria voltou a ser uma questão de embate entre estados e municípios.

Os softwares são programas de computador que, como regra geral, são comercializados por meio de licença de uso, i.e., o proprietário ou desenvolvedor concede a um terceiro, mediante remuneração, o direito de usá-los por tempo (in)determinado e de forma não exclusiva. A disponibilização do software, originalmente, dava-se por meio de suporte físico. Por esse motivo, os estados entendiam tratar-se de uma típica situação envolvendo circulação de mercadorias, sujeita, portanto, ao ICMS. Os municípios, de outro lado, defendiam que os softwares seriam tipos de serviços passíveis de inclusão nos itens 22 e 24 da lista do Decreto-Lei nº 406, de 31.12.1968.

Essa discussão foi levada aos Tribunais e, em 10.11.1998, em acórdão do ministro Sepúlveda Pertence (Recurso Extraordinário 176.626-SP), o Supremo Tribunal Federal analisou a incidência do ICMS nas operações de licenciamento ou cessão de direitos de uso de softwares. Naquela oportunidade, foi definido o conceito de mercadoria para fins de cobrança do ICMS e, adicionalmente, foi feita a classificação dos softwares em 3 categorias, sendo elas: (a.) softwares standard ou de prateleira, desenvolvidos para utilização em massa, sem qualquer grau de personalização para os clientes; (b.) software por encomenda, desenvolvidos para atender especificamente às necessidades de um cliente, não se destinando, portanto, ao consumo em massa; e, por fim, (c.) softwares adaptados ao cliente, que são os softwares standard após a realização de determinadas adaptações para atender a alguma necessidade particular dos clientes; esses últimos, a despeito da existência de um certo grau de modificações, não se confundem com softwares por encomenda.

A partir desse precedente, foi sedimentado na Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que se o software fosse desenvolvido de forma personalizada, estaria configurada a prestação de serviços, sujeitando-se, portanto, à incidência do ISS, ao passo que se o software fosse de prateleira (com suporte físico), haveria a incidência do ICMS.

Mas os softwares não precisam mais de suporte físico e, modernamente, têm sido disponibilizados em meio digital, por meio de download ou via plataforma na “nuvem” [nesse caso, são conhecidos como Software as Service (“SaaS”)]. Nesse sentido, vem sendo aos poucos eliminada a circulação de suporte físico contendo um software, o que, a princípio, afastaria a incidência do ICMS.

Os estados passaram, contudo, a sustentar que o software seria uma mercadoria virtual, sem suporte físico, e, por meio dos Convênios do Conselho Nacional de Política Fazendária (“CONFAZ”) nºs 181, de 28.12.2015, e 106, de 29.09.2017, estabeleceram os procedimentos de cobrança do ICMS sobre operações com bens e mercadorias digitais comercializados via transferência eletrônica de dados. Recentemente, o estado de São Paulo, visando implementar o quanto decidido em referidos Convênios, promulgou o Decreto Estadual nº 63.099/2017, de 22.12.2017, passando a tributar, a partir de abr/2018, as operações com bens e mercadorias digitais. Outros Estados têm editado normas semelhantes.

Paralelamente a isso, por meio da Lei Complementar nº 157, de 29.12.2016, foram incluídos novos itens na Lista de Serviços do ISS, com o objetivo de possibilitar aos municípios a cobrança de referido imposto sobre diversos serviços digitais, incluindo-se o SaaS, hospedagem de dados, disponibilização de conteúdo de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet etc. (cf. itens 1.03 e 1.09, da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar n.º 116/2003).

Pode-se concluir, desde logo, que ainda hoje tanto os estados quanto os municípios continuam a exigir dos contribuintes o ICMS e o ISS sobre operações envolvendo softwares, com base em legislação que não disciplina novas situações tributárias advindas dos avanços tecnológicos. Na prática, ainda se tenta adaptar regras e solucionar questões modernas a partir de leis editadas muito antes do surgimento dos serviços digitais ou do IoT.

Não fossem suficientes as discussões no âmbito legislativo, esse novo conflito de competências sobre softwares via download está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, no qual tramitam duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade que discutem a incidência do ICMS sobre operações envolvendo programas de computador. Discute-se se os Estados teriam instituído uma nova hipótese de incidência do ICMS, porque não haveria circulação de mercadorias (físicas), mas apenas a cessão ou licença de direitos de uso. Discute-se, nessa mesma linha de raciocínio, no Recurso Extraordinário nº 688.223/PR, com repercussão geral, se o ISS poderia ser exigido nestes casos pelos municípios, na medida em que a licença ou cessão de direito de uso de softwares não constituiria uma obrigação de fazer e, nesse sentido, não poderia ser enquadrada como prestação de serviços sujeita a referido imposto.

Diante da falta de clareza de determinados conceitos jurídicos essenciais para a definição das hipóteses de incidência do ICMS e do ISS, bem assim da ausência de adequada interpretação de tais conceitos no âmbito dos tribunais superiores ou, ainda, de regulamentação por estados e municípios, o que se verifica atualmente é uma tentativa desenfreada de múltiplas cobranças por estados e municípios sobre as ditas operações digitais. Não apenas os custos tributários, mas também a insegurança jurídica que cerca esse tipo de atividade, podem prejudicar o desenvolvimento do ambiente de IoT no Brasil.

Conforme mencionado em outros artigos desta série, o ambiente de IoT envolve dispositivos e objetos com sensores conectados via internet à plataforma, que integra dados enviados e analisa as informações para determinados propósitos. O uso de softwares, dessa forma, é o primeiro passo indispensável para o desenvolvimento do IoT, porque é por meio deles que se viabiliza a troca de dados e informações coletadas entre os diversos dispositivos.

Atualmente, por exemplo, há no mercado os dispositivos denominados “wearables”, ou seja, aqueles que podem ser utilizados no cotidiano das pessoas, a exemplo de relógios inteligentes que permitem a realização de diversas atividades como o monitoramento de condições vitais, auxílio no controle de atividades físicas, rastreamento via GPS, acesso a e-mails e conectividade sem a necessidade de utilização de um smartphone. O acesso dos usuários a todas as informações e dados obtidos por meio desses dispositivos wearables é feito por meio de aplicativos, que são, na verdade, softwares. Não há dúvidas, dessa forma, que os softwares são indispensáveis ao desenvolvimento do ambiente de IoT e, nesse sentido, o conflito de competências entre os estados e os municípios apresenta-se como um entrave a novos investimentos na área.

A experiência internacional sobre o tema leva-nos a questionar se a solução mais adequada para esse conflito de competências entre estados e municípios realmente envolveria “forçar” o enquadramento da atividade de venda de softwares instalados via download ou SaaS ou, ainda, de outras novas situações que certamente existirão no ambiente de IoT, nos campos de incidência do ICMS ou ISS. A solução mais adequada poderia ser obtida a partir de um novo olhar para as novas situações criadas pela economia digital, compreendendo-se que, na verdade, essas operações estão fora do escopo de incidência tributária dos referidos tributos. O direito deve se adaptar a novas situações que não puderam antes ser previstas, como mencionado no acórdão da ADI-MC 1945, julgado em 26.05.2010, do ministro Octavio Gallotti.

As inovações tecnológicas, principalmente no ambiente de IoT, representam grandes desafios para os sistemas tributários brasileiro e internacional, porque envolvem novas atividades, que não se adequam aos conceitos preexistentes. No âmbito internacional são crescentes as discussões e soluções sobre a tributação eficiente da economia digital, tendo sido constatado que novos mecanismos precisariam ser criados para atividades inovadoras.

Na Itália, por exemplo, recentemente foi aprovada a instituição do Tributo sobre Transações Digitais (o “Web Tax”), que deverá ser cobrado a partir de 2019. Referido tributo será devido à alíquota de 3% sobre pagamentos brutos por serviços digitais prestados, independentemente de onde a transação for concluída. Tanto os residentes como os não residentes estão sujeitos ao Web Tax, que deverá ser retido pelos clientes no momento do pagamento da contraprestação. Os serviços compreendidos no novo tributo são aqueles prestados por meio da internet ou de rede eletrônica e que envolvam mínima intervenção humana. Havia inicialmente previsão de edição de um Decreto até abr./2018, com a especificação dos “serviços prestados por meio eletrônico”, mas ainda não houve a publicação de tal norma.

A discussão sobre a tributação eficiente no mercado digital tomou contornos mais avançados também na União Europeia (“UE”) e, em 21.03.2018, a Comissão Europeia apresentou propostas arrojadas (o “Digital Tax Package”) com novas regras para garantir que as atividades digitais, como aquelas desenvolvidas no ambiente de IoT, sejam tributadas de uma forma justa e favorável. O objetivo é garantir a tributação de determinadas atividades que atualmente não estão abarcadas pelos ordenamentos jurídicos dos países membros da UE. Defende-se a necessidade de uma reforma tributária global, mas, até que isso ocorra, propõe-se, dentre outras medidas, a criação de um tributo transitório de 3%, aplicável às receitas das principais atividades digitais que atualmente escapam totalmente aos tributos na UE. Esse tributo incidiria sobre as atividades mais difíceis de se capturar a partir das regras fiscais atuais, porque nelas os usuários desempenham um papel importante na criação de valor. Exemplos seriam as receitas de venda de espaço publicitário online, de atividades intermediárias digitais que permitem aos usuários interagir com outros usuários e de venda de dados gerados a partir de informações fornecidas pelo usuário. Esse tributo seria inicialmente cobrado pelos Estados-Membros onde estiverem localizados os usuários finais e aplicar-se-ia apenas às sociedades com receita bruta anual global totais de mais EUR750 milhões e receitas na UE de mais de EUR50 milhões. A UE percebeu que, de um lado, não seria justa a total não incidência tributária sobre essas novas atividades, muitas vezes desenvolvidas por grandes empresas, inclusive para se garantir isonomia entre os agentes no mercado, e, de outro, que um certo grau de segurança jurídica pode viabilizar mais investimentos.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”), por meio do Inclusive Framework (ou “IF”; grupo especial formado por 113 países) igualmente emitiu o estudo denominado “Tax Challenges Arising from Digitalisation – Interim Report 2018”, com o objetivo de orientar os países a lidar melhor com esses desafios advindos da nova era digital. Mas, diferentemente da EU, o IF não recomenda a adoção de medidas provisórias, que poderiam em sua visão impactar a inovação tecnológica e novos investimentos, gerando-se tributação excessiva e um acúmulo de carga tributária. A OCDE reconhece a necessidade de desenvolvimento de legislação fiscal internacional específica para o setor, mas propõe mais estudos, de forma que a nova sistemática seja coerente com a promoção de eficiência econômica.

Os movimentos internacionais vêm sugerindo que o ambiente de IoT exigiria a criação de modelos de tributação totalmente inovadores, baseados em novos conceitos da economia digital.

No Brasil, ainda se discute a questão do conflito de competências entre estados e municípios para tributação de softwares via download e SaaS, sem se levar em consideração novas atividades no ambiente de IoT que precisam ser solucionadas ou, por exemplo, a tributação da renda de tais atividades. O direito tributário brasileiro ainda sofre com dúplices cobranças sobre algumas atividades, de um lado, e com a ausência de cobranças sobre outras, gerando-se injustiças e, ainda, um elevado grau de insegurança jurídica, que pode afetar investimentos em negócios inovadores. Nessa mesma linha de raciocínio que envolve a criação de novos tributos para a economia digital, tem-se notícias de que o Centro de Cidadania Fiscal (“CCiF”) elaborou um projeto de “Reforma do Modelo Brasileiro de Tributação de Bens e Serviços”, com o objetivo primordial de se criar um Imposto Sobre Bens e Serviços (“IBS”), resultado da unificação do PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS, cuja receita seria dividida entre União, Estados e Municípios. Uma medida nesse sentido poderia, além de garantir maior simplificação e redução de custos de compliance no direito brasileiro, viabilizar a cobrança de tributos sobre as receitas de atividades digitais. Mas, para sua implementação, seriam necessárias alterações no texto constitucional, debates sobre o federalismo fiscal, além de outras discussões mais profundas de política tributária, muito complexas no atual ambiente tenso e complexo da política brasileira.

Uma outra alternativa, mais simples a curto prazo, mas que vai de encontro à necessária simplificação do sistema tributário brasileiro, seria a criação de um tributo específico para as atividades digitais, a exemplo da Itália, EU e IF. Levando-se em consideração os contornos da economia digital, o Brasil poderia, por exemplo, instituir um novo tributo sobre as receitas de tais atividades digitais, incluindo-se aquelas realizadas em ambiente de IoT, o qual substituiria PIS, Cofins, ICMS e ISS. Esse tributo seria devido no local onde estivessem localizados os usuários finais, afastando-se a não tributação ou dupla tributação do ambiente digital. Esse tributo demandaria, obviamente, discussões sobre o sujeito ativo, divisão da receita tributária entre os entes da federação, alterações à Constituição Federal, dentre outras. Mas, independentemente dessas dificuldades, a instituição desse novo tributo poderia, a curto ou médio prazos, garantir algum nível de segurança jurídica nessa área e representar uma solução para afastar os velhos problemas de conflito de competências entre estados e municípios, que se agravam com os avanços tecnológicos e trazem potencial risco ao desenvolvimento ao ambiente de IoT.

Conclusão

O Sistema Tributário deve ser adequado para eliminar antigas discussões e propiciar uma regulamentação jurídica atualizada e direcionada ao ambiente de IoT, a qual deve englobar a tributação de softwares, via download e SaaS, além de outros serviços digitais, acompanhando-se as discussões no cenário internacional. Se não houver, a médio prazo, alterações no modelo atualmente vigente no país, com a definição dos tributos devidos sobre essas atividades, o desenvolvimento do ambiente de IoT pode tornar-se bastante desinteressante no Brasil, dadas as inseguranças e elevados custos envolvidos. Enquanto não há uma definição legislativa e considerando as imensas dificuldades para se aprovar uma reforma no atual cenário político brasileiro, os tribunais superiores deveriam analisar determinadas questões que há anos não são revisitadas, buscando-se definir os limites de incidências do ISS e ICMS para tornar a tributação nessa área mais eficiente e justa.

Fonte: JOTA

   
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