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“Deixamos de dever ao FMI para dever aos bancos”

  • 19 de outubro de 2015

Maria Lucia Fattorelli é auditora fiscal aposentada, mas sua vida não tem nada de inativa. Coordenadora do movimento pela Auditoria Cidadã da Dívida Pública, ela passa os dias voando entre o escritório em Brasília e diversos estados brasileiros, onde oferece seminários e palestras para mostrar a urgência de uma investigação dos contratos que levam o Brasil a gastar quase a metade de seu orçamento anual com juros e amortizações da dívida pública, enquanto Saúde e Educação levam apenas 3,6% do bolo cada uma.

“Utilizamos o endividamento às avessas, de tal modo que ao invés de representar um aporte de recursos, ele tem sido um mecanismo de desvio de dinheiro público para o setor financeiro privado”, acusa. A inversão dessa relação era o que pedia o movimento popular que se opunha à intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) no Brasil – uma das bandeiras do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, atendida pelo ex-presidente Lula em 2005, que negociou a antecipação do pagamento do empréstimo ao banco. Uma atitude que, na opinião de Maria Lucia, não trouxe benefícios políticos nem financeiros para o país. “A dívida apenas mudou de mãos e ficou muito mais cara. E ainda continuamos vinculados aos compromissos com aquela instituição, como o Ministério da Fazenda avisou que faria”, lamenta.

Dez anos depois, a população brasileira vê o receituário neoliberal ser aplicado mais uma vez nos diversos contingenciamentos de gastos públicos anunciados ao longo de 2015 pelo governo federal. “O ajuste fiscal serve para que sobrem mais recursos para pagar os juros da dívida, que são os mais elevados do mundo e não param de subir”, alerta a auditora. Sua defesa da revisão de contratos firmados com instituições financeiras não é inédita no mundo: no Equador, o presidente Rafael Correa apoiou-se em um levantamento feito por especialistas internacionais – time do qual ela participou – para propor aos credores uma maneira de reduzir os pagamentos, fazendo sobrar recursos para investimentos sociais. “Ao contrário do que se poderia imaginar, 95% dos credores aceitaram”. Além do Equador, Maria Lucia também participou da recente auditoria da dívida pública na Grécia, tema que ela também aborda nesta entrevista ao Extra Classe.

Extra Classe – Por que devemos estar atentos à dívida pública?
Maria Lucia Fattorelli – Em tese, o endividamento deveria ser um instrumento de melhoria social, possibilitando grandes investimentos em infraestrutura, geração de energia e outras necessidades sociais. No entanto, após as investigações feitas na CPI da Dívida, em 2010, constatamos que a maior parte da nossa dívida atual é ilegítima, não traz nenhuma contrapartida para o país: geramos dívida para pagar juros da nossa própria dívida, o que, inclusive, é inconstitucional. E essa dívida pública está sendo paga por toda a sociedade, que precisa conhecer o que está pagando. Para exemplificar, enquanto Saúde e Educação receberão cada uma cerca de 3,6% do orçamento planejado para 2015, juros e amortizações da dívida pública levarão 47% dos gastos do governo federal.

EC – Qual a origem da dívida pública e quem são seus credores?
Maria Lucia – A origem da dívida é sempre obscura e incerta, daí a necessidade de se auditar os contratos realizados. Oficialmente não temos como saber quem são os credores da dívida, pois o próprio governo federal afirma não saber, enquanto o Banco Central se nega a informar, alegando “sigilo bancá- rio”. Contudo, sabemos que são poucas instituições financeiras, e de grande porte, as únicas com condições para comprar os títulos da dívida diretamente do Banco Central, os chamados dealers.

EC – A dívida do Brasil diminui com o passar dos anos?
Maria Lucia – Não, aumenta cada vez mais. Na década de 1970, no chamado “milagre econômico”, houve um aumento exponencial da nossa dívida, que em aproximadamente dez anos passou de R$ 5 bilhões para R$ 70 bilhões. Nos últimos 20 anos, a dívida interna brasileira tem aumentado ininterruptamente de maneira exponencial, atingindo a quantia de R$ 3,58 trilhões em junho de 2015. Já a dívida externa teve uma leve queda em 2005, devido ao pagamento antecipado ao FMI e ao resgate antecipado de títulos da dívida externa – que foi feito com pagamento de ágio! –, mas depois voltou a aumentar novamente e com muito mais intensidade, batendo, atualmente, todos os recordes, na faixa dos 550 bilhões de dólares.

EC – Em que medida a antecipação do pagamento ao FMI foi uma vitória?
Maria Lucia – Tornar-se independente do FMI teria sido importante para o país poder decidir soberanamente seus próprios rumos. No entanto, não foi isso que ocorreu já que o Ministério da Fazenda atestou que apesar da quitação da dívida, o Brasil continuaria vinculado aos compromissos com aquela instituição. Financeiramente, a operação também não foi benéfica ao país e custou caro ao bolso dos brasileiros. Para pagar a dívida de US$ 15,5 bilhões ao FMI, o Brasil utilizou dólares de reservas internacionais que haviam sido constituídas às custas de emissão de títulos da dívida interna. Os juros da dívida com o FMI eram de 4% ao ano, enquanto os juros dos títulos da dívida na época eram de cerca de 19% ao ano.

EC – Trocamos uma dívida barata por outra mais cara?
Maria Lucia – Sim, a dívida apenas mudou de mãos e ficou muito mais cara: deixamos de dever ao FMI para dever aos bancos que compram os títulos da dívida interna, e a um custo maior. Além disso, o dólar vinha desvalorizando fortemente na época. Se não tivéssemos antecipado o pagamento e aguardado o seu vencimento em 2007, teríamos desembolsado uma quantia bem menor, em reais, para quitar aquela dívida. Em resumo, na realidade a dívida não acabou, mas aumentou e mudou de lugar. A dívida que era externa passou a ser interna, com a diferença de que os juros passaram da casa dos 4% para a casa dos 19%.

EC – O que o ajuste fiscal promovido pela União tem a ver com a dívida pública?
Maria Lucia – O orçamento federal proposto pelo Executivo para 2015 reserva R$ 1,356 trilhão para os gastos com a dívida pública, o que corresponde a 47% de tudo que o país vai arrecadar com tributos, privatizações e emissão de novos títulos, entre outras rendas. Além da absorção de mais de 40% dos recursos do orçamento federal a cada ano, a dívida pública tem sido a justificativa para a implementação de políticas econômicas equivocadas, como a prática de taxas de juros elevadíssimas que amarram o país, e a contínua privatização e entrega de patrimônio público, sob alegação de que é preciso cumprir metas de superávit e pagar dívidas. A auditoria seria capaz de evidenciar esse processo e promover mudanças de forma consciente e transparente.

EC – Uma auditoria permitiria modificar os contratos da dívida, favorecendo o Brasil?
Maria Lucia – A CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados entre 2009 e 2010 teve acesso a diversos contratos da dívida externa desde a década de 1970, e denunciou a existência de diversas ilegalidades e ilegitimidades; cláusulas que ferem a nossa Constituição Federal e altamente lesivas ao país em termos financeiros. É evidente que diante da apuração de ilegalidade os contratos terão que ser revistos. Mas para isso, terá que ser realizada a auditoria, que é uma determinação da nossa Constituição Federal e que nunca foi cumprida. Os resultados da auditoria são expressos em relatórios que servem de instrumento para ações concretas em todos os campos: popular e social, parlamentar e jurídico. Assim, é muito importante a realização da auditoria não só para conhecer o processo de endividamento, mas também para fundamentar as ações que devem ser tomadas em relação à dívida.

EC – E por que a senhora defende uma auditoria cidadã?
Maria Lucia – Exigimos que esta auditoria ocorra com participação cidadã. No ano 2000, a sociedade civil se mobilizou e realizou um grande plebiscito nacional sobre a dívida externa. Mais de 6 milhões de pessoas votaram “não” à continuidade do pagamento da dívida sem a realização da auditoria prevista na Constituição. A partir daí é que nasceu o nosso movimento. Nesses 15 anos de investigações, temos demonstrado a existência de um verdadeiro Sistema da Dívida, isto é, a utilização do endividamento público às avessas, de tal modo que ao invés de representar aporte de recursos tem sido um mecanismo de contínuo desvio de dinheiro público para o setor financeiro privado. Auditar a dívida significa desmascarar esse sistema sombrio, expondo-o à luz da verdade para que os cidadãos tenham condição de definir conscientemente sobre o seu futuro, com opções reais de ter uma vida digna.

EC – Embora importante, esse é um tema árido, de natureza financeira, muitas vezes de difícil compreensão para o cidadão comum…
Maria Lucia – Finanças públicas podem ser mais compreensíveis do que se pensa. Faz parte das estratégias de dominação monopolizar o conhecimento, tornando-o de difícil acesso. Um dos objetivos da Auditoria Cidadã da Dívida é derrubar o mito de que esse tema seria somente para especialistas, tornando acessíveis as informações a respeito da dívida pública.

 

“Deixamos de dever ao FMI para dever aos bancos”
Foto: Matheus Caporal/Ceape/TCE-RS

EC – Você tem mantido uma agenda intensa de debates sobre o tema. Acredita que ele está se popularizando?
Maria Lucia – Sem dúvida, o debate está amadurecendo por diversos fatores. A política de ajuste fiscal, que contingenciou cerca de R$ 80 bilhões no início deste ano, atingindo todas as pastas orçamentárias, leva as pessoas a perguntar: ajuste fiscal para quê? Para que sobrem mais recursos para pagar os juros da dívida, que são os mais elevados do mundo e não param de subir. As investigações contra a corrupção, a crise financeira seletiva – que atinge principalmente a indústria e o comércio ao mesmo tempo em que os lucros dos bancos cresce ainda mais – a crise social e a crise política levam a cidadania a buscar novas soluções para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

EC – O Rio Grande do Sul é hoje o mais endividado dos estados brasileiros. Os gaúchos são duplamente prejudicados por este sistema?
Maria Lucia – O Rio Grande do Sul não está só neste processo, pois o refinanciamento das dí- vidas pela União foi um projeto geral, que atingiu quase todos os estados. Assim, os gaúchos estão duplamente prejudicados pelo Sistema da Dívida e, dependendo do município onde o cidadão vive, está triplamente prejudicado, caso este também possua dívida refinanciada. A União não poderia cobrar juros dos estados e municípios pelo mesmo princípio que proíbe a cobrança de tributos entre os entes federados. Além de cobrar indevidamente, ainda cobra os juros mais elevados do planeta; um abuso que necessita urgentemente ser enfrentado e revisado desde a sua origem.

EC – Realizar uma auditoria na dívida estadual também é importante?
Maria Lucia – É necessário! Só uma auditoria completa vai determinar qual era a natureza da dí- vida refinanciada em 1998 – se era legítima –, o que o Estado efetivamente tomou emprestado e o que decorre de processos ilegais, como a aplicação de juros sobre juros. Além disso, é preciso elucidar qual a natureza do passivo do Banrisul que foi transformado em dívida do estado do Rio Grande do Sul, e está sendo paga por todo o povo gaúcho.

EC – A auditoria da dívida equatoriana é um exemplo de que esse processo funciona?
Maria Lucia – O Equador provou a eficiência da ferramenta de auditoria. Em 2007, o presidente Rafael Correa criou uma comissão para realizar auditoria da dívida, nomeando diversos membros nacionais equatorianos e seis internacionais. Tive a honra de ser uma dessas pessoas, representando a Auditoria Cidadã da Dívida. O resultado do trabalho foi impressionante, pois respaldou o ato soberano do presidente, que permitiu a anulação de 70% da dívida externa em títulos. Os recursos liberados têm sido investidos principalmente em saúde e educação.

EC – Como ocorreu essa inversão? Houve algum tipo de sanção do mercado pela suspensão do pagamento?
Maria Lucia – Correa assume o poder em 2007, cria a comissão de auditoria, e, diante das evidências de ilegalidades, ilegitimidades e até fraudes comprovadas, suspende o pagamento dos juros e destina os recursos integralmente para as áreas de Saúde e Educação. Pela primeira vez na história inverteu-se a equação e os gastos sociais superaram os gastos com a dívida. Em 2009, quando consegue anular 70% da dívida externa em títulos, que era justamente a parcela mais onerosa, há uma queda brutal nos gastos com a dívida e o gastos sociais sobressaem. É importante observar que a partir de 2011 os gastos com a dívida voltam a crescer, o que mostra que o país não ficou isolado e continuou tendo acesso a créditos financeiros. Não houve sanção contra o Equador, e muito menos calote. O Equador constatou que a grande maioria dos títulos emitidos por governos anteriores eram ilegítimos e ofereceu recomprar sua dívida por 30% do valor. Ao contrário do que se poderia imaginar, 95% dos credores aceitaram a proposta.

EC – Você também participou de uma recente auditoria na Grécia. Como foi?
Maria Lucia – Foi uma experiência muito importante, pois, apesar do curtíssimo prazo, conseguimos realizar um trabalho preliminar e demonstrar as flagrantes ilegalidades e ilegitimidades no processo de endividamento grego. Revelamos que a Grécia não tem obtido absolutamente nenhum benefício com os peculiares acordos de dívida implementados desde o anunciado “resgate” ao país por meio da intervenção da Troika desde 2010. Tais acordos têm servido aos interesses dos bancos privados, em perfeita consonância com um conjunto de medidas ilegais, adotadas para possibilitar um fabuloso resgate bancário.

EC – O governo, entretanto, não conseguiu evitar um novo acordo que aprofunda os ajustes…
Maria Lucia – O novo acordo assinado por Tsipras antes de sua renúncia aprofundará ainda mais a grave situação daquele povo já tão sofrido. Estive na Grécia durante sete semanas e tive a oportunidade de constatar os danos decorrentes do encolhimento de 22% do PIB nos últimos cinco anos. A situação do povo é dramática. Centenas de famílias estão com todos os membros desempregados, a precariedade é impressionante. E estamos falando de pessoas graduadas e até com mestrado e doutorado. Mais 110 mil pessoas deixaram o país, devido à falta de emprego. Diversos serviços de saúde e educa- ção foram eliminados e está ocorrendo privatização em massa de todo o patrimônio público. Degradação social, com famílias vivendo do lixo; miséria, e mais de 5 mil suicídios contabilizados na conta da crise desde 2010; um drama social muito triste. E tudo para salvar bancos.

Fonte.

   
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