Seja qual for o resultado, as eleições americanas de 3 de novembro deixarão o Brasil no pior dos mundos. Na improvável hipótese de uma vitória do presidente Donald Trump, seja de acordo com as regras do peculiar Colégio Eleitoral americano ou fruto de sua intenção pública de tentar invalidar um resultado que lhe seja desfavorável, o Brasil terá de se conformar com a crescente irrelevância internacional pela qual optou na eleição presidencial de Jair Bolsonaro em 2018. Com uma agravante: num segundo governo Trump saído de um eventual processo eleitoral contestado judicialmente, os Estados Unidos, sob o republicano, aprofundarão a obra já iniciada de destruição das regras de governança internacional, que contribuíram ativamente para construir e legaram ao mundo depois da Segunda Guerra, e se tornarão fonte permanente de instabilidade. Nada disso trará ganhos ao Brasil, cujos governos, de esquerda ou de direita, sempre se pautaram pelo multilateralismo.
A hipótese de o ex-vice-presidente Joe Biden ganhar e levar tornou-se mais provável depois do desempenho catastrófico de Trump no primeiro debate, realizado no final de setembro, que poderá custar-lhe não apenas a Casa Branca como a maioria republicana no Senado. Ao contrário de Trump, o democrata sabe onde fica e preza o Brasil como ator regional e global em temas de interesse para ambos os países. Mas com Biden na Casa Branca o atual governo brasileiro terá de fazer uma rápida e dramática correção de curso, se é que isso é possível com a direção do Itamaraty tão comprometida com o bolsolavismo.
Como o alinhamento servil aos Estados Unidos é a marca mais forte da diplomacia do “mito”, numa hipótese de vitória de Biden, não está descartado um processo forçado de adaptação. O primeiro passo poderia ser uma boa limpeza e dedetização do Itamaraty, a outrora veneranda Casa de Rio Branco e centro irradiador de excelência no serviço público, reduzida no atual governo em sede de uma estranha seita de diplomatas “antiglobalistas”, seja lá o que isso for, e seus alucinados mentores e seguidores, que incluem até adeptos do terraplanismo e de outras esquisitices. Facilitaria se a sanitização se estendesse ao Ministério do Meio Ambiente, onde vigoram a incompetência e a má-fé, como ilustrado pelo vazamento da gravação de uma reunião ministerial em abril passado.
Com Biden instalado no Salão Oval, não haverá hostilidade ao Brasil. Mas não haverá tampouco tolerância com ações, omissões, iniciativas ou declarações que violem compromissos que o país assumiu em sua Constituição, suas leis e em acordos internacionais. Ou com a estupidez negacionista do Planalto em questões científicas prementes, como a pandemia e a mudança climática. Não por acaso, Biden citou as queimadas na Amazônia no primeiro debate presidencial, na única menção extensa a um país no duríssimo confronto. “A floresta tropical no Brasil está sendo destruída”, afirmou Biden, ao confirmar que, sob sua liderança, os Estados Unidos voltarão ao Acordo de Paris da Convenção do Clima, que Trump denunciou unilateralmente. “Parem de destruir a floresta e, se não fizerem isso, haverá consequências econômicas significativas”, advertiu.
O líder democrata e seus assessores, todos oriundos do governo de Barack Obama, entendem ser do interesse nacional do Brasil a proteção da Amazônia, do Pantanal e dos demais biomas cuja preservação é essencial para a manutenção da riquíssima biodiversidade do país e do regime de chuvas na América do Sul, crucial para a produtividade do moderno agronegócio brasileiro, ele mesmo resultado de meio século de investimentos em pesquisa científica. Se vencer, Biden terá vários interlocutores no Brasil nos ambientes políticos, empresariais, acadêmicos e não governamentais. O Brasil não é Bolsonaro, um presidente acidental, sem partido e minoritário desde sua conturbada eleição.
A ênfase no saber científico para o enfrentamento eficaz de pandemias é outro tema atualíssimo de interesse mútuo do Brasil e dos Estados Unidos e que pautará a cooperação bilateral, se e quando passar a insensatez reinante na Esplanada dos Ministérios. A ciência brasileira nasceu do combate às epidemias na segunda metade do século XIX e vicejou graças à competência e dedicação de médicos sanitaristas pioneiros como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Adolfo Lutz e Emílio Ribas, que apostaram na educação e na pesquisa. Eles e seus discípulos prepararam o caminho para a bem-sucedida campanha de contenção do HIV-aids das décadas de 1980 e 1990 e a construção do SUS, êxitos brasileiros conhecidos mundo afora.
“UM EVENTUAL TRIUNFO DE TRUMP TORNARÁ OS ESTADOS UNIDOS UMA FONTE PERMANENTE DE INSTABILIDADE, O QUE SERÁ RUIM PARA O BRASIL. UMA VITÓRIA DE BIDEN EXIGIRÁ UMA FAXINA NAS POLÍTICAS BOLSONARISTAS E VAI GERAR NOVOS ATRITOS”
Transformado pela irresponsabilidade do discípulo de Trump em Brasília no segundo maior necrotério mundial da Covid-19, o Brasil é, a despeito do governo que elegeu, parte dos esforços internacionais que levarão ao controle da pandemia. Biden e seus assessores estão cientes de que duas das mais promissoras vacinas contra o vírus, em fase de testes clínicos, foram desenvolvidas por consórcios científico-empresariais integrados pelo Instituto Butantan e pela Fiocruz. Sabem, também, que ambas as instituições brasileiras estão entre as poucas, ao sul do Equador, que têm capacidade instalada para a produção de vacinas na escala industrial necessária para conter o flagelo que já contaminou 33 milhões e matou mais de 1 milhão pessoas.
Sob Biden, o governo dos Estados Unidos estará atento também às posições de Brasília em foros globais e regionais sobre a democracia, a liberdade e os direitos humanos, incluindo os direitos das mulheres, dos indígenas e dos homossexuais. Mais imediatamente, a postura do Brasil na complexa confrontação entre a China e os Estados Unidos continuará a ser observada de perto em Washington e pode converter-se em ingrediente pesado do contencioso bilateral, seja quem for o ocupante da Casa Branca. A bola da vez é a escolha pelo Brasil da tecnologia 5G para a telefonia celular. Nesse assunto, as diferenças entre Trump e Biden são mais de estilo do que de substância. Com Biden na Casa Branca, haverá certamente uma revalorização da diplomacia e a busca de uma acomodação com Pequim. Por maiores que sejam as diferenças ideológicas e de interesses entre a China e os Estados Unidos, as economias dos dois países estão imbricadas uma na outra, em longas e complexas cadeias de produção e na comercialização de bens e serviços, o que as compele ao pragmatismo. Por isso, com Biden haverá empenho em baixar a temperatura e buscar soluções negociadas.
Isso é o que o Brasil precisa para evitar os prejuízos colaterais de uma confrontação entre seus dois maiores parceiros comerciais e definir uma estratégia que corresponda a seus interesses — um exercício difícil e para o qual a liderança do país, de esquerda ou de direita, mostrou-se até aqui inapetente e despreparada. A União Europeia tem se esforçado para encontrar um caminho em meio a esse duelo. É aconselhável, por exemplo, prestar atenção ao que líderes como Angela Merkel, a premiê da Alemanha, andam fazendo. A boa notícia é que não há alternativa: ou o Brasil descobre seu caminho ou se rende a seu pior e mais corrosivo inimigo: a mediocridade, tão familiar quanto nociva ao país.
Jornalista, Paulo Sotero é professor visitante da Universidade George Washington e pesquisador sênior do Woodrow Wilson International Center for Scholars
FONTE: O GLOBO
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