A economia está, há tempos, ideologizada, sobretudo no Brasil. Há certos e errados sem nuances ou qualificações
Em tempos de pandemia, crise econômica, desarranjos políticos e incertezas para todos os desgostos, exercer o pensamento crítico é o ato mais importante que o ser humano pode fazer. Pensamento crítico é questionamento, é abandono do viés de confirmação, é não seguir alguém porque concorda com tudo que aquela pessoa diz ou escreve. Pensamento crítico é saber trabalhar na zona das probabilidades em que nada é binário. Não preciso dizer que o pensamento crítico está em falta — isso já sabemos. Mas a constatação não significa que não se possa exortá-lo quando tudo está ideologizado.
A economia está, há tempos, ideologizada, sobretudo no Brasil. Há certos e errados sem nuances ou qualificações. Ao observar a alta dos preços dos alimentos, por exemplo, se apressam em dizer que está aí a primeira evidência de que o déficit fiscal e a dívida pública em elevação haverão de provocar processo inflacionário preocupante. Não se contém o impulso de soltar tais “análises” isentas de ponderações. Por exemplo: há vários motivos que podem estar contribuindo para os preços dos alimentos, como períodos de entressafra e os efeitos do auxílio emergencial sobre os artigos básicos de consumo. Além disso, os alimentos compõem um dos itens do índice de preços, o IPCA. Se sobem os alimentos e caem outros preços, não há, necessariamente, um processo inflacionário em curso. O que é verdade inequívoca é que os alimentos têm maior peso na cesta dos consumidores de renda mais baixa, portanto essas altas podem contribuir temporariamente para o aumento da desigualdade. É igualmente verdadeiro que preços de alimentos têm enorme peso político: não à toa, Bolsonaro começou a fazer pressão nos supermercados.
O que não se considera no calor das explicações para a alta dos preços dos alimentos no Brasil é o contexto. O contexto não é favorável a uma alta generalizada de todos os preços, que é o que configura um processo inflacionário. O contexto, na realidade, continua a ser o de uma epidemia descontrolada que abala qualquer alicerce econômico — e segue ceifando vidas. Esse quadro é compatível com uma economia cuja recuperação será muito lenta e claudicante, algo que contradiz a hipótese de inflação galopante. Rimou sem querer.
Há muitas outras coisas na economia que estão ideologizadas e precisando desesperadamente de pensamento crítico, mas vou passar para a ciência, área em que essa ausência causa mais estragos. A economia, afinal, não é uma ciência dura ou exata, o que permite visões e opiniões distintas. A ciência, não.
Não há opinião em ciência, mas sim consenso formado por evidências robustas. Na economia, é possível colher opiniões contrárias e a favor da reforma administrativa, por exemplo.
Na ciência não há como se posicionar contrariamente a algo que passou pelo crivo do método científico, foi avaliado e reavaliado por pares, e assim estabelecido. Tomemos como exemplo o vírus causador da Covid-19. Não é questão de opinião se o agente infeccioso é ou não o sars-CoV-2. O vírus foi geneticamente sequenciado, passou pelo comitê internacional de taxonomia dos vírus e recebeu esse nome por ser parente próximo do vírus que provocou a doença conhecida como sars em 2002 e 2003.
Onde entra o pensamento crítico na ciência? Entra no questionamento das insistências que não têm embasamento científico, como o uso de medicamentos tais quais a cloroquina ou a ivermectina no tratamento de Covid-19. Entra na capacidade de avaliar se uma suposta evidência tem ou não sustentação nos dados disponíveis. Entra na vontade de distanciar-se de argumentos sem fundamento, ainda que sejam proferidos por pessoas de quem se gosta.
Sei que escrevo essa exortação ao pensamento crítico para poucas pessoas. A moda dos nossos tempos não é questionar, contrapor, ou até mesmo concordar com ressalvas. A moda é concordar ou discordar com veemência, ainda que para isso seja necessário desqualificar o interlocutor da forma que for. Mas, como tudo na vida, um dia isso também haverá de mudar. Aguardo ansiosamente por esse dia.
Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Fonte: O GLOBO
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