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É preciso levar a democracia social a sério

  • 13 de agosto de 2020

O novo coronavírus, que deflagrou a crise da Covid-19, não é democrático. Ele tem preferências de classe e não atinge a todos igualmente. A tempestade é a mesma, estamos todos em mar aberto, mas em barcos diferentes. E nem todos chegarão a pisar nas areias das praias ou nas mesmas areias.

A visão da índole democrática do vírus é falsa e serve apenas ou também serve para encobrir outra realidade. Talvez seja verdadeira apenas aparentemente e serve ao propósito de, numa certa medida, nos reconfortarmos com nossas próprias mazelas decorrentes da nossa condição humana.

Essa concepção encobre a relação dos homens entre si e deles com a natureza e expõe as nossas verdadeiras fraquezas e idiossincrasias. Porque se há lições a serem tiradas dessa crise humanitária, uma delas é a de que a pandemia contribuiu para agravar ainda mais as desigualdades sociais, revelando a face mais cruel do ser humano.

Tal constatação decorre do fato de que alguns têm mais meios de se proteger, com trabalho permanente, remunerações preservadas, realizando serviços em home office, em espaços amplos e confortáveis, que lhes permitem evitar contatos diretos.

Os mais vulneráreis são as maiores vítimas. A massa imensa de trabalhadores informais, precários, "uberizados", sem salários, sem direitos, sem uma rede mínima de proteção social, não pode ficar em casa, em isolamento, para evitar o contágio.

A interconexão das crises sanitária, econômica e social lembra-nos que somos todos apenas seres humanos. Mas mostra-nos também que os privilégios de poucos, que geram as vulnerabilidades de muitos, provocam tragédias para todos.

A contundência dos efeitos da pandemia tem posto a nu a fragilidade do esquema tradicional do idealismo constitucional que insiste na transferência automática dos valores da democracia liberal para um mundo que exige outra racionalidade, baseada nos valores da democracia social.

O constitucionalismo contemporâneo, de matriz iluminista e racionalista, construiu enorme arcabouço teórico a respeito da democracia. Refletir sobre a questão da democracia social em tempos de pandemia poderia seguir o roteiro tradicional muito apreciado nos meios acadêmicos.

Talvez pudesse começar com uma preleção sobre tipos de democracia, seus fundamentos, suas finalidades. Poderia envolver digressões sobre as promessas igualitárias da democracia social. Talvez fosse pertinente tecer louvações aos direitos e às garantias que decorrem do Estado de Bem-Estar Social.

Em uma reflexão desse jaez pareceria apropriado tratar de algumas dicotomias teóricas muito em voga na academia, a exemplo das dicotomias envolvendo direitos humanos e direitos fundamentais, direitos positivos e direitos negativos, racionalidade privatista e racionalidade publicista.

Poderia caber alguma reflexão sobre as "gerações" de direitos, tentando explicitar a natureza complexa da exigibilidade dos direitos sociais e as imensas limitações jurídicas para assegurar sua efetividade. Talvez fosse necessário dizer que tais direitos custam dinheiro e estão sujeitos à reserva do possível.

Mas essas categorizações, muito apreciadas nos espaços acadêmicos, que fomentam as dogmáticas da razão do Estado, da razão da economia e da razão do mercado, não passam de armadilhas ideológicas que objetivam impedir que o direito cumpra o seu papel prospectivo, transformador, emancipatório.

Integram tais ideias e discursos a estratégica para que o direito continue servindo como instrumento de legitimação de exclusões e segregações, de concentração de riqueza e poder, de intensificação das desigualdades e de esgarçamento da realidade social.

Como armadilhas ideológicas, essas categorizações impedem a reconstrução, o "renascimento", a "re-constituição" da ordem jurídica a partir dos comandos emancipatórios contidos na Constituição.

A forma como os direitos são pensados reflete na forma como são ou não levados à efetividade prática. Os direitos sociais sofrem historicamente fortes restrições em razão da retórica dominante sobre o papel do direito na vida política, na vida social e na vida econômica.

Aprendemos que o plano normativo não é suficiente para assegurar, no plano concreto, a efetividade dos direitos. Como produtos culturais, fruto dos processos históricos, resultados das conquistas sociais, os direitos constituem um instrumento a mais na luta humana por justiça e dignidade.

Embora ferramentas não apenas úteis, como necessárias — diria mais, fundamentais! —, os direitos sociais, enquanto submetidos à mera retórica formal, não são suficientes, sozinhos, para a construção da democracia social [1].

O Direito, como fenômeno social, é história [2]. Ou seja, o Direito opera na história, no plano concreto, ao nível das relações que dinamizam o tecido social. Sua concretização depende da correlação de forças político-ideológicas entre os grupos sociais.

Compreender o Direito como ele é, como se concretiza historicamente, é essencial para a construção de uma prática jurídica emancipatória, reconstrutora da ordem jurídica e capaz de contribuir eficazmente para a realização dos direitos sociais.

Nesse sentido é a lição do professor Joaquín Herrera Flores de que os direitos humanos (incluídos os direitos sociais) não são categorias prévias nem à ação política nem às práticas econômicas. A luta pela dignidade humana é a razão e a consequência da luta pela democracia e pela justiça [3].

Toda sociedade se organiza em torno de um conjunto de ideias e discursos a priori plausíveis para descrever e estruturar seu funcionamento. O propósito é oferecer respostas coerentes a um conjunto de questões amplas e complexas sobre a organização ideal da sociedade [4].

Cabe aos teóricos, aos especialistas, aos chamados intelectuais orgânicos, a exemplo dos juristas e dos filósofos, como construtores de ideologias, organizar as ideias e os discursos capazes de fundamentar e legitimar os interesses dos grupos sociais, econômicos e políticos hegemônicos.

Na narrativa atual, as desigualdades são justas: decorrem de um processo livremente escolhido, em que todos têm as mesmas oportunidades de acesso ao mercado e à propriedade. Nessa lógica, todos se beneficiam da acumulação dos mais ricos, que são também os mais empreendedores, os mais merecedores e os mais eficientes.

Para o mundo do trabalho, a retórica dominante baseia-se nas ideias e discursos de que o Direito do Trabalho: I) impede o dinamismo econômico; II) desestimula ou reduz os empregos; III) prejudica as empresas; IV) encarece o custo do trabalho; V) impede a inovação tecnológica; e VI) inibe os ganhos de produtividade.

Essas são construções ideológicas que buscam apresentar fundamentos "naturais" para as desigualdades. Em diferentes sociedades, em todas as épocas e em todas as latitudes, grupos hegemônicos tentam "naturalizar" as disparidades sociais existentes [5].

Assim, as desigualdades seriam do interesse dos grupos excluídos e do conjunto da sociedade e de toda forma sua estrutura é a única possível e não pode ser substancialmente alterada sem que ocorram grandes tragédias [6]. Essa é a racionalidade liberal, conservadora, excludente.

Os direitos sociais remetem a outra racionalidade. Pressupõem que a desigualdade não é econômica ou tecnológica: é ideológica e política [7]. Sua construção depende das nossas escolhas e das representações que temos do papel do Estado, da ideia que fazemos da justiça social e dos sentidos que atribuímos a uma economia justa.

A racionalidade emancipatória funda-se na ideia de que os direitos são produtos das lutas sociais e instrumentos a mais na luta para construção de uma sociedade democrática e inclusiva, estruturada no paradigma do constitucionalismo humanista e social.

A Constituição de 1988, ao edificar os pilares do Estado democrático de Direito, dos direitos fundamentais da pessoa humana e da concepção do direito como instrumento civilizatório [8], descortinou amplos espaços para a construção de uma democracia igualitária.

Esses são os alicerces sobre os quais repousa o novo paradigma do constitucionalismo humanista e social contemporâneo. O projeto de edificação entre nós de uma autêntica democracia social passa pela construção de espaços emancipatórios que conduzam à efetividade dos direitos sociais.

No espaço judicial, na dinâmica social e no mundo da política impera uma racionalidade conservadora, de forte viés liberal, de esvaziamento dos direitos sociais. Com essa racionalidade, por meio de um olhar retrospectivo, a serviço da manutenção do status quo, imprime-se à leitura das normas de direitos sociais uma ideologia que impede uma hermenêutica garantidora de sua efetividade.

Nesse cenário de profunda interconexão entre as crises sanitária, econômica e social, brutalmente agravado pelo flagelo do desemprego, do subemprego e da informalidade, é necessário enfatizar que a imensa desigualdade social brasileira não é econômica ou tecnológica: é ideológica e política.

No contexto atual brasileiro pesa ainda outra crise, que surgiu ou se agravou com a crise da Covid-19, que é a crise política, que nada mais é do que o reflexo de nosso passado colonial, escravagista, patrimonialista e de castas, em que persistem traços de segregação social entre casa-grande e senzala.

A construção de uma sociedade justa, socialmente democrática, passa necessariamente pela superação das armadilhas ideológicas que obstruem os espaços emancipatórios, o que implica levar a sério a democracia a partir do novo paradigma do constitucionalismo humanista e social.

Isso exige o rompimento com a velha racionalidade liberal e com seu substrato político-ideológico, de modo a viabilizar a construção de outra práxis jurídica e, em especial, de uma práxis jurisdicional comprometida com a luta humana por direitos, justiça e dignidade.

Assim, para vencer a batalha cotidiana pela implementação dos direitos sociais, cuja emergência se acentuou mais ainda em razão da superveniência da grave crise sanitária, é necessário por em prática uma racionalidade emancipatória e de efetividade, de modo que o direito assuma de fato o seu papel inclusivo, igualitário, humanista e social, atuando como autêntico instrumento civilizatório.

 é desembargador do TRT da 22ª Região, doutor em Direito do Trabalho pela PUC-SP, doutor em Direito das Relações Sociais pela UCLM (Espanha) e professor da Uninassau (Teresina).

FONTE: Conjur

[1] CAPLAN, Luciana. Direitos sociais da Constituição Cidadã e as armadilhas ideológicas que levam à sua inefetividade: uma leitura a partir da teoria crítica. In: MONTESSO, C. J.; FREITAS, M. A.; STERN, M. F. C. B (Org.). Direitos sociais na Constituição de 1988: uma análise crítica vinte anos depois. São Paulo: LTr, 2008, p. 276.

[2] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Por uma dogmática constitucional emancipatória. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 59.

[3] FLORES, Joaquín Herrera. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[4] PIKETY, Thomas. Capital e ideologia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 14.

[5] Idem, p. 17.

[6] Idem, ibidem.

[7] Idem, p. 16.

[8] DELGADO, Maurício Godinho; e DELGADO, Gabriela Neves. A Reforma Trabalhista no Brasil – Com os comentários à Lei nº 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, pp. 21-38.

   
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