O engajamento multipartidário mostra que ela é a política pública com o maior potencial de angariar o apoio da sociedade, dos políticos, independentemente das ações do governo Bolsonaro
Nesta semana foi lançada a Frente Ampla pela Renda Básica, iniciativa do Congresso Nacional que reúne 23 partidos. Como parte do evento de seu lançamento, promoveu-se um debate entre economistas sobre a formulação da política que é, hoje, a de maior interesse nacional, sem qualquer exagero. Fui uma das participantes dessa primeira rodada de conversas como integrante do Conselho Consultivo da Frente, que reúne dez pessoas entre economistas, representantes da sociedade civil e pessoas que já integraram governos anteriores.
Primeiro, destaco que é um feito e tanto o Brasil ter conseguido, neste momento de tantas desavenças, avançar na discussão de uma medida que, até pouco tempo, era considerada inalcançável. O engajamento multipartidário mostra aquilo que venho discutindo neste espaço desde que a pandemia eclodiu: a renda básica é a política pública com o maior potencial de angariar o apoio da sociedade, dos políticos, independentemente das ações do governo Bolsonaro. Não vou repisar todos os argumentos a favor da renda básica como eixo fundamental de qualquer estratégia de redução de pobreza e da desigualdade. Também não vou esmiuçar novamente por que a renda básica é uma medida de caráter transverso, e deve ser vista como uma política de Estado. Minha intenção é compartilhar com vocês, leitores, a visão que tive sobre o primeiro grande debate público entre economistas acerca do tema. Para os que quiserem assistir a ele, está disponível no site da Folha de S.Paulo com link pelo YouTube.
Éramos quatro economistas integrantes do Conselho Consultivo a debater. Além de mim, estavam Laura Carvalho, Arminio Fraga e Marcos Mendes. Ficou claro em nossas interações que o caminho para a construção de consensos terá muitos percalços, o que é natural. Afinal, ainda que se entenda minimamente o que “renda básica” significa, são muitos os desenhos possíveis, são muitas as dificuldades de desenhá-la de acordo com necessidades de financiamento razoáveis diante dos desafios que o Brasil já enfrenta, são variadas as visões sobre por onde começar e quais camadas da população priorizar. Isso para não falar de questões espinhosas como: Devemos manter todos os programas sociais já existentes? Devemos modificar alguns dos programas existentes para dar espaço à renda básica? Em que medida a renda básica deverá complementar a rede de proteção social já existente? Já esmiucei minha visão em artigos anteriores e a resumo aqui: penso que a renda básica deve preencher lacunas existentes no atual sistema de proteção social brasileiro — atendendo, por exemplo, as dezenas de milhões de pessoas que oscilam entre a formalidade e a informalidade no mercado de trabalho — e que deve ter a maior abrangência possível, observadas nossas restrições fiscais. Falo em abrangência possível pois podemos começar com um programa modesto que, posteriormente, quando tivermos capacidade fiscal, venha a ser ampliado para incorporar outros grupos vulneráveis. Entre os debatedores houve alguma convergência em aspectos do problema do desenho e das formas de custear a medida, mas é prematuro dizer mais do que isso neste momento.
O mais interessante para mim foi a convergência quanto ao teto de gastos. Não é possível discutir a adoção de um programa de renda básica sem enfrentar a questão do teto como fator que impossibilita qualquer política pública hoje. Como também já discuti neste espaço, o teto foi concebido de forma excessivamente rígida, tornando-o proibitivo quando não pudermos mais contar com o decreto de calamidade pública para financiar gastos cujas necessidades permanecerão.
“FALO DE GASTOS COM SAÚDE, JÁ QUE A CONVIVÊNCIA COM A PANDEMIA DEVE DURAR E AS SEQUELAS DA DOENÇA COBRARÃO SUA CONTA”
Também tenho em mente gastos com educação, para dar conta de desafios antigos e novos. Esses gastos estão em consonância com a Constituição Federal e são demandas da sociedade brasileira que ganharam centralidade e urgência com a pandemia, o que a derrota do governo na Câmara na votação do Fundeb ilustra muito bem. São, em síntese, gastos com serviços públicos e proteção social que põem o teto de gastos em questão. Ao menos três dos quatro debatedores — Arminio, Laura e eu — reconheceram abertamente a necessidade de modificá-lo.
Essa convergência é de grande importância. Até recentemente, prevalecia entre os economistas a ideia de que mexer no teto seria o caminho para o inferno: o Brasil seria visto como pária por investidores diversos. Que essa posição tenha começado a mudar é uma grande conquista. Estamos apenas no início do trabalho, e há muito a fazer. Mas, para uma primeira rodada de conversas, tensas em determinados momentos, foi um grande avanço.
Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Edição n.º 1150 da Revista Época
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