Neste Universo em que há vírus, pandemia e um grau brutal de incerteza, uma coisa é certa: a conexão entre medicina e economia é e continuará a ser não apenas muito forte, mas extremamente relevante
A descoberta do sars-CoV-2 em janeiro de 2020 criou uma bifurcação no tempo-espaço. Se universos paralelos existem há um em que este vírus não apareceu, e o nosso, em que ele se tornou responsável pela pior pandemia das últimas décadas, quiçá pior do que a chamada gripe espanhola, do início do século passado. Neste Universo em que há vírus, pandemia e um grau brutal de incerteza, uma coisa é certa: a conexão entre medicina e economia é e continuará a ser não apenas muito forte, mas extremamente relevante.
Não foram poucas as vezes em que escrevi neste espaço que não era possível traçar qualquer cenário econômico sem algum entendimento sobre o vírus e a doença que ele provoca. Também escrevi que não havia possibilidade de desenhar políticas públicas adequadas sem esse mesmo entendimento. Hoje, qualquer pessoa que queira opinar, formular, ou gerir as políticas econômicas precisa ou voltar aos estudos — o que para muitos é difícil — ou estar muito próximo de alguém que tenha o conhecimento da área biomédica que lhe falta. No meu caso, tenho gosto em intensificar e diversificar meus estudos, e tenho a sorte de conhecer pessoas muito qualificadas nos ramos da medicina, da epidemiologia, da virologia. As horas e os dias que tenho passado estudando têm sido de extrema valia para entender o contexto, a dimensão de nossos erros e imaginar o que podemos vir a enfrentar pela frente. Os desafios serão imensos.
Parte desse desafio será o de colocar o olhar econômico a serviço da medicina e da saúde pública, além, evidentemente, da proteção social. A economia do cuidado que emerge da crise humanitária instaurada pela pandemia requer novos instrumentos de política pública, como a renda básica universal, tema recorrente de artigos meus para este espaço. Contudo, ela precisa também dialogar intensamente com o conhecimento biomédico, e há várias razões para isso.
Começo com a própria natureza do vírus e da doença. Ainda prevalece a ideia de que o sars-CoV-2 é responsável por uma infecção respiratória, de graus variados de severidade. Embora ele já não seja mais comparado ao vírus da gripe, o entendimento de que se trata de uma doença do trato respiratório tem influenciado gestores de política econômica, previsões sobre a retomada do crescimento e medidas para alcançá-la. Por exemplo, ao entender a doença como tal, cria-se uma expectativa excessivamente otimista de que vacinas e tratamentos estão próximos: afinal, sabemos tratar males desse tipo causados por outros agentes infecciosos. Porém, a Covid-19 não é somente uma doença pulmonar. A cada dia que passa somam-se as evidências de que o sars-CoV-2 entra na corrente sanguínea, tornando a Covid-19, antes de tudo, uma doença vascular. Se o vírus corre na circulação, a doença que ele causa é, portanto, sistêmica. Isso a torna mais imprevisível, tanto na apresentação clínica de sintomas quanto em relação à capacidade de desenvolver vacinas e tratamentos eficazes. É partindo dessa incerteza que os cenários de política econômica deveriam ser formulados. É contando com o risco de sequelas reversíveis e não reversíveis associadas a um mal sistêmico que deveria ser avaliado o montante de recursos a serem destinados ao SUS, por exemplo. É também dessa perspectiva que se justifica a discussão sobre a renda básica: não como algo pretensamente utópico, mas como uma medida que pode sustentar dezenas de milhões de pessoas em meio à incerteza e/ou quando algumas delas porventura perderem sua força de trabalho em razão de problemas relacionados à Covid-19.
Nesse cruzamento explícito entre a medicina e a economia há muito que construir e pensar. Qual será o melhor desenho para nosso sistema de saúde? Que programas sociais deveremos priorizar? Quais devem ser as prioridades para o investimento público? Ainda tem sentido insistir na quadra reforma-dívida-déficit-inflação como eixo central das políticas macroeconômicas? Ou é chegada a hora de reorientar esse eixo para a saúde e a proteção social, passando pelo meio ambiente, para que o crescimento futuro seja sustentável, inclusivo e justo? Essas perguntas não podem ser respondidas por meio de equações ou análises econométricas. Essas são questões que envolvem maior conhecimento científico, empenho em buscar novas soluções para novos problemas e a centralidade do cuidado com as pessoas. Ainda espero ver esse tipo de debate no Brasil, a serviço da população, não de interesses individuais.
Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
FONTE: Época
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