Economista defende a criação de uma rede de proteção social básica que possa ser expandida e recolhida rapidamente em momentos de crise / Marcelo Medeiros
As crises trazidas pela Covid-19 não serão as únicas e talvez nem sequer sejam as piores. Em um mundo globalizado, as condições para novas epidemias estão dadas. Além disso, estão à porta crises ambientais de impacto ainda desconhecido. Esses eventos não podem ser enfrentados individualmente. Exigem ação coletiva. E essa ação requer não só um protagonismo das elites, mas também a colaboração dos mais fracos.
Para colaborar, todos precisam estar protegidos. É por isso que a proteção social é bem mais do que uma questão de justiça. A epidemia jogou isso na cara de quem fingia a inexistência do problema: literalmente, a saúde, e até mesmo a vida dos mais ricos, passou a depender da proteção aos mais pobres.
A proteção social interessa a todos, e não apenas a quem depende dela diretamente. Suas dimensões são amplas. A que me interessa especialmente é a das transferências de renda, porque podem ser expandidas rapidamente e usadas para vários objetivos.
Ficou evidente na pandemia que o país não tem uma rede de proteção social preparada para enfrentar crises. Nem sequer se sabia quem precisava de proteção. O Cadastro Único, um dos pilares do Bolsa Família, só alcança um terço dos brasileiros. No entanto, dois terços da população (o equivalente a mais de 60%) são vulneráveis à pobreza. Isso significa que metade desse contingente tende a cair na pobreza ao longo de uma década, e isso sob circunstâncias normais. Sob recessão e crise, o quadro é pior.
Além disso, a proteção social atual segue o ciclo geral da economia. Cresce quando a economia vai bem, encolhe quando ela vai mal. Pode parecer surreal, mas depois que a pobreza disparou, a partir de 2016, o Bolsa Família foi retraído. É exatamente o contrário do que deveria acontecer.
“MONTAR UMA REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL FLEXÍVEL COLOCARIA O BRASIL EM CONDIÇÕES MUITO MELHORES PARA ENFRENTAR AS PRÓXIMAS CRISES. TRARIA TAMBÉM BENEFÍCIOS IMEDIATOS E PERMANENTES À POPULAÇÃO MAIS POBRE, MESMO QUE EMERGÊNCIAS JAMAIS VENHAM A OCORRER”
Para criar um aparato mais robusto capaz de atenuar o empobrecimento, é preciso desenhar uma rede flexível e ampla o bastante usando as ferramentas que já existem, como o Suas, o Sistema Único de Assistência Social. Não será fácil nem rápido. Mas é possível e totalmente viável do ponto de vista das finanças públicas.
Uma rede é uma infraestrutura. Sobre ela pode ser montada qualquer tipo de transferência, universal ou focalizada, permanente ou temporária. Essa rede precisa ser protegida dos ciclos econômicos, para poder se expandir nas recessões. Também precisa ser protegida dos ciclos políticos, para não ser usada como moeda eleitoral. Tampouco deve depender de grandes mobilizações políticas para obter um orçamento de emergência. Precisa ainda ser ágil, de baixo custo operacional. Melhor ainda se trouxer benefícios à população que a justifiquem mesmo fora das emergências.
Uma infraestrutura desse tipo pode ser construída sobre três pilares: um fiscal, um de governança e um operacional. Sobre o pilar fiscal, para que o financiamento de transferências de renda seja protegido das recessões, é possível criar um fundo soberano, uma poupança que é alimentada para os tempos de vacas magras. Nesse caso, não vamos entrar no mérito do custo dos programas de transferências para o Tesouro e se há espaço fiscal para tanto. Vamos nos ater à infraestrutura dessa rede, que é meramente administrativa, requerendo basicamente o mesmo aparato técnico usado para criar o Cadastro Único.
Além disso, a alimentação e a recomposição desse fundo devem também estar protegidas, em cláusulas especiais, de qualquer legislação de controle de gastos que venha a existir. O espírito por trás desse pilar é que a responsabilidade fiscal e a responsabilidade social precisam andar de mãos dadas. Por exemplo, a recente ruptura emergencial do teto de gastos só foi possível por se tratar de uma epidemia em escala nacional. Fosse um problema local — uma epidemia no Rio Grande do Norte, uma enchente no Rio de Janeiro ou uma seca no Rio Grande do Sul —, dificilmente seria possível criar mobilização política suficiente para uma emenda orçamentária de emergência.
Não há novidade nisso. Fundos com objetivos similares existem em vários lugares do mundo, tanto em governos nacionais como locais. Nos Estados Unidos são conhecidos como rainy days funds, para o gasto público em geral, e na Zona do Euro foram recomendados pelo FMI para a proteção dos sistemas financeiros.
Porém, controlar um fundo desses não é uma tarefa trivial. É tentador usá-lo como ferramenta de interesses eleitorais. Por isso, é importante haver um pilar de governança sólido, uma estrutura que tenha relativa independência em relação aos governos do momento, como aliás ocorre com os bancos centrais de vários países. Deve ser uma estrutura que se submeta a todos os controles do Estado, mas que não seja programa de um governo específico. Isso certamente envolve a definição de metas e mandatos independentes e uma organização que atente para três aspectos: a decisão ou comando dos gastos, a gestão do fundo e os mecanismos de avaliação, controle e auditoria.
O pilar operacional requer três tipos de inclusão da população: documental, financeira e digital. Inclusão documental, por um lado, não é um problema difícil de resolver e, por outro, rende créditos políticos a quem promovê-la. Por isso, é possível que conte com o apoio de prefeitos e governadores. Ter registro civil, identidade e CPF é bom para todo mundo e pré-requisito para a operação de uma rede ampla de proteção social.
Ainda faltam passos na legislação de proteção de privacidade, mas o Brasil já reúne as condições necessárias para avançar na identificação digital de sua população, como fizeram países tão grandes quanto a Índia e a China ou países com muito menos recursos, como a Guatemala e o Nepal. Por sinal, o Brasil já teve sucesso até em um programa de identificação biométrica da população, o cadastro eleitoral, portanto não há qualquer obstáculo intransponível à frente.
A inclusão financeira é outra etapa necessária. Em uma crise, garante agilidade no recebimento e flexibilidade no uso da proteção recebida. Porém, entre a população mais pobre, cerca de metade não tem acesso a transações bancárias. Contas digitais são baratas e, desnecessário dizer, servem para muito mais do que receber assistência social. Economizariam o tempo, reduziriam os custos e aumentariam a segurança das pessoas mais pobres em suas transações cotidianas. Numa sociedade como a brasileira, a inclusão financeira deve ser vista como uma política social.
No mundo, sobram soluções tecnológicas para a inclusão financeira de pessoas de baixa renda. Países como o Quênia já atingiram níveis elevados de inclusão valendo-se justamente dessas soluções. O Brasil já parte com vantagem, pois tem um excelente sistema formado por bancos e novas instituições financeiras, eficiente e altamente interconectado. Tivesse já avançado nisso, boa parte das filas em bancos, fraudes e demanda por dinheiro em papel para receber a renda básica emergencial na pandemia teria sido evitada.
É preciso ainda garantir inclusão digital. Essa inclusão depende de três itens: infraestrutura de redes e equipamentos, cobertura dos custos de dados e qualificação para o uso. O primeiro não é um problema maior, pois a cobertura de rede já é bastante ampla, e telefones, tablets e computadores estão crescentemente presentes nos lares brasileiros. Preencher lacunas nesse item não seria uma grande dificuldade.
O segundo, o custo dos dados, é a razão principal para exclusão digital no Brasil. Mas existe uma solução tecnologicamente banal para isso: a cobrança reversa. Assim como se liga a cobrar para o telefone da Previdência Social, deveria ser possível se conectar a cobrar no site da Previdência. Ou ainda nas escolas, universidades e outros serviços públicos. Há exemplos triviais desse tipo de cobrança. Hoje, a cobrança de dados de uso do WhatsApp, por exemplo, é subsidiada pelo Facebook. O usuário não paga pelos dados que usa.
Desnecessário dizer que custa menos às pessoas ter atendimento digital do que presencial e é mais barato manter um site do que uma agência física ou mesmo uma central de telefonia. Portanto, interessa a todos os níveis de governo avançar nisso.
O terceiro, mais difícil de resolver, é o da qualificação para operações digitais. Difícil porque enfrenta barreiras geracionais e educacionais. Em parte, isso pode contar com soluções de simplificação de desenho, mas é provável que crianças, jovens e adultos precisem ser vistos como um dos caminhos de apoio para a inclusão digital nas famílias e que o apoio dos Centros de Referência de Assistência Social seja necessário.
Não é difícil concluir que fortalecer o Suas e montar uma rede de proteção social flexível que fosse devidamente protegida de ciclos econômicos e políticos colocaria o Brasil em condições muito melhores para enfrentar as crises que virão. Além disso, os requisitos operacionais dessa rede — inclusão documental, financeira e digital — trazem benefícios imediatos e permanentes à população mais pobre, mesmo que emergências jamais venham a ocorrer.
Marcelo Medeiros é economista e sociólogo. Desenvolve pesquisas sobre o tema da desigualdade na Universidade de Brasília e no Ipea e é professor visitante da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos
Fonte: ÉPOCA
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