Em defesa da segurança jurídica e da proteção da confiança
A reforma administrativa em pauta traz significativas alterações no regime jurídico dos servidores públicos estatutários e tem gerado intenso debate entre juristas, parlamentares e servidores públicos. Objetivando a diminuição do gasto de pessoal com os servidores públicos estatutários, a reforma pretendida tem como ponto central a revisão do instituto da estabilidade no serviço público.
Além de restringir a garantia da estabilidade apenas para algumas carreiras, como a Polícia Federal, as Forças Armadas e a Receita Federal, o projeto de reforma administrativa prevê, dentre outras iniciativas, a redução do número de cargos públicos; o estabelecimento de critérios de avaliação por insuficiência de desempenho para desligamento de servidores públicos; a eliminação do regime de promoção automática por antiguidade, fixando-se exclusivamente o sistema de mérito para as movimentações funcionais; e a ampliação do regime de contratação temporária.
No sistema constitucional brasileiro prevalece a relação estatutária entre o Estado e seus servidores. Ressalvadas, obviamente, as situações configuradoras de direito adquirido, o Estado detém o poder de alterar legislativamente o regime jurídico de seus servidores. Isso significa que não existe garantia de que os servidores serão sempre disciplinados pelas regras que vigoravam quando ingressaram no serviço público.
Registre-se que qualquer reforma que pretenda modificar a garantia da estabilidade no serviço público só pode ser implementada mediante emenda constitucional.Entretanto, aquelas situações já consolidadas como direito adquirido não podem ser desconstituídas, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. As modificações a serem introduzidas pela reforma administrativa não poderão desconstituir situações jurídicas já conquistadas por servidores públicos, aplicando-se suas disposições apenas àqueles que ingressarem no serviço público após a sua implementação.
As conquistas dos servidores públicos durante a trajetória de suas vidas funcionais e que se integram ao seu patrimônio como direitos adquiridos não podem ser atingidas ou modificadas por posterior inovação legislativa. Esses direitos constituem autêntico direito adquirido e, por isso, devem ser obrigatoriamente resguardados
Os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança também podem ser invocados como barreira às radicais transformações determinadas pelo Estado no
regime jurídico do servidor público. Do princípio da segurança jurídica, deduz-se como conteúdo jurídico essencial que os atos emanados da administração pública respeitem um mínimo de previsibilidade e, com o princípio da proteção da confiança, deles se extrai que o poder público não está autorizado a adotar providências novas, modificando as que foram anteriormente por ele próprio encetadas, surpreendendo a confiança depositada pelos cidadãos na conduta estatal e desconstituindo situações jurídicas consolidadas.
A reforma administrativa não poderá suprimir ou modificar situações que já tenham sido incorporadas ao patrimônio jurídico do servidor como autênticos direitos adquiridos, mas também não poderá desconstituir situações já consolidadas pelo decurso do tempo, sob pena de violação aos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, principalmente os da proteção da confiança ou da boa-fé e da segurança jurídica.
Ana Cláudia Finger é advogada e professora de Direito Administrativo da Universidade Positivo.
Entre o tempo do governo e o tempo do direito
A reforma administrativa deverá se aplicar aos atuais servidores públicos? Em parte. A resposta pode parecer insatisfatória ao observador apressado, mas, parafraseando H.L. Mencken, todo problema complexo costuma vir acompanhado de respostas simples, elegantes e completamente erradas.
À parte as afirmações, pelo governo, de que a reforma apenas se aplicará a servidores que vierem a ingressar no serviço público após a sua vigência, não é verdade que nenhuma das novas regras se aplicará aos servidores atuais. Por outro lado, há regras aplicáveis aos servidores atuais que, independentemente de qualquer desejo do governo, não poderiam ser alteradas senão pela promulgação de nova Constituição. O tempo do governo não é, necessariamente, o tempo do direito.
A compreensão desse tema demanda a compreensão de dois conceitos jurídicos: o de direito adquirido e o de regime jurídico dos servidores públicos.
Por direito adquirido deve-se entender a configuração de situação na qual um sujeito preencheu todos os requisitos para usufruir um direito, esteja ele usufruindo esse direito ou não. Imagine-se o caso de servidor que cumpriu todos os requisitos para a obtenção de benefício previdenciário. Ainda que sobrevenha alteração legislativa que imponha requisitos adicionais, o servidor já adquiriu o direito àquele benefício.
A Constituição alçou o direito adquirido ao status de direito fundamental e, portanto, de cláusula pétrea, de modo que nem mesmo emenda constitucional poderá aboli-lo. Trata-se de garantia vinculada à ideia de segurança jurídica. A conclusão é que direitos adquiridos pelos servidores atuais jamais poderão ser tocados pela reforma, ainda que desagradem o governo.
As discussões mais relevantes aparecem, no entanto, quando da definição do que é abrangido pelo conceito de direito adquirido. Aqui, ganha importância o segundo conceito acima mencionado, de regime jurídico do servidor público.
É que se tem fixado o entendimento de que o servidor não tem direito adquirido ao regime jurídico aplicável quando assumiu sua função pública. Por regime jurídico, entenda-se o conjunto de normas jurídicas aplicáveis num dado marco temporal. O raciocínio baseia-se na premissa de que, como regra, o Estado tem o poder de modificar as normas aplicáveis ao serviço público, inclusive para reduzir direitos de servidores. Não fosse assim, o regime dos servidores permaneceria engessado, e a necessária adequação social do direito ficaria comprometida.
Em defesa da segurança jurídica e da proteção da confiança
A situações futuras, nas quais nenhum direito do servidor tenha se consolidado, se deverá aplicar o novo regramento, mesmo que ele seja desfavorável ao servidor, aí incluídos os servidores atuais. Alterações nas regras do processo administrativo disciplinar, por exemplo, se aplicarão à apuração de fatos futuros que envolvam atuais servidores.
Assim, a menos que a reforma estabeleça exceções e especifique quais regras se aplicarão somente aos servidores futuros, várias situações futuras vivenciadas por servidores atuais serão regidas pelas novas regras. Mas o poder de reforma constitucional não é ilimitado. Toda alteração que pretender abolir direitos fundamentais dos servidores – como a aventada extinção da necessidade de processo administrativo disciplinar para a demissão – será fatalmente inconstitucional.
André Portugal é advogado, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e professor do Law Experience do FAE Centro Universitário.
Comente esta Notícia