A hegemonia absoluta dos interesses do financismo no comando da economia apresenta raízes mais antigas na história recente do Brasil. Antes mesmo de Paulo Guedes ser guindado ao cargo de superministro, já circularam pelo binômio Ministério da Fazenda/Banco Central figuras como Henrique Meirelles (Bank of Boston), Joaquim Levy (Banco Bradesco), Ilan Goldfajn (Banco Itaú) e outros.
Para além dessa representação, digamos assim, mais “direta” dos desejos da banca no interior do aparelho de Estado, as últimas décadas foram recheadas de nomeações especiais para cargos estratégicos na alta administração pública federal. Trata-se de indivíduos absolutamente identificados com diagnósticos equivocados a respeito das origens dos diversos momentos da longa crise econômica brasileira. Em razão desse viés, sua atuação no direcionamento de políticas públicas se orientava no sentido de penalizar a maioria da população e privilegiar a nata das instituições financeiras.
Um dos aspectos mais dolorosos dessa verdadeira tirania exercida sobre o conjunto da sociedade em nome do capital parasita se evidencia na sistemática do chamado “superávit primário”. Em uma primeira abordagem superficial, tudo parece fazer sentido. Afinal, ninguém acha correto que o Estado fique gastando, de forma indefinida, mais do que arrecada. Assim, o importante seria manter um equilíbrio nas contas públicas. E, sempre que for possível, até mesmo realizar um esforço para obter um extra, um superávit fiscal. Ou seja, orientar a política econômica para que haja receitas maiores do que despesas no âmbito do orçamento público. Bingo – tudo solucionado. Só que não!
Armadilha do superávit primário
Ocorre que esse discurso, aparentemente ingênuo e coerente, não passa de mera cortina de fumaça. A armadilha do aparentemente ingênuo e indolor superávit primário esconde o essencial da intenção de quem o sugere. Trata-se de impor um garrote severo sobre as contas orçamentárias, com exceção das sacrossantas despesas financeiras. Assim, a administração pública deve realizar um enorme esforço para gerar saldos positivos nas contas como saúde, educação, previdência social, pagamento de salários de servidores, saneamento, segurança pública e outras. Mas a despesa com pagamento de juros da dívida pública segue livre, leve e solta, sem nenhum constrangimento.
Na verdade esse estratagema foi concebido ainda ao longo da década de 1980 no interior das organizações multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM). As economias dos países do chamado Terceiro Mundo atravessavam um período de enormes dificuldades, em especial por conta do peso das suas dívidas externas. Como eram obrigações contratadas junto a bancos internacionais privados, o FMI entrou em ação para garantir aos países os recursos necessários ao pagamento das parcelas vincendas e a rolagem do restante das dívidas. Mas aí veio o pulo do gato na forma do superávit primário e de outras exigências apresentadas como de contrapartida de tal “ajuda”. Era o início do chamado Consenso de Washington, a pérola do arrazoado neoliberal. O FMI emprestava os recursos para os países pagarem à banca internacional, mas exigia em troca que fossem levadas a cabo políticas de privatização, abertura comercial, desregulamentação econômica e a introdução da cláusula do superávit primário no arranjos internos de política econômica dos países.
A banca sempre no comando
Como a segunda metade da década de 1980 foi marcada pela fase de superação da ditadura militar e pela promulgação da Constituição em 1988, o Brasil ainda resistiu um pouco a entrar de cabeça nesse ideário conservador, mas travestido de uma pseudo-modernidade contemporânea. A incorporação dessas orientações emanadas do coração do financismo só ganharam força mesmo a partir do Plano Real em 1994 e do início dos mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Apesar das importantes mudanças verificadas a partir de 2003, o fato é que os governos de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016) mantiveram à risca a política de extração de superávit primário. O êxito na articulação do golpeachment contra a presidenta consolidou as vertentes mais extremadas do financismo no interior do governo Temer. Bolsonaro e Guedes vieram na sequência e estamos sentindo as consequências ainda mais graves dessa dupla no comando do país.
Ao mesmo tempo em que privilegia a drenagem de recursos públicos para o cumprimento das despesas financeiras do Estado, o sistema termina por provocar uma elevação fenomenal do endividamento público. Durante o ano de 2019, o governo brasileiro destinou exatos R$ 367 bilhões ao pagamento de juros da dívida, exatamente no período em que o discurso da “austeridade necessária” e da “cota de sacrifício” ganhava espaço nos grandes meios de comunicação. Afinal, dizem os “especialistas” convidados a dedo a opinar, o país está quebrado e o governo não tem recursos para cumprir suas obrigações com saúde, educação, previdência etc. Pura balela!
Os números do relatório da dívida pública evidenciam a prioridade do financismo no comando do Estado. De acordo com informações da Secretaria do Tesouro Nacional, em dezembro passado o estoque total da dívida pública federal alcançou o total de R$ 4,2 trilhões. Em tese, esse valor não é um problema em si mesmo. A grande maioria dos países do mundo se utilizam desse tipo de medida para promover seu desenvolvimento social e econômico. A questão que deve ser colocada em evidência no caso brasileiro refere-se à forma como se dá a gestão do endividamento governamental. A Tabela 1 abaixo nos revela como ocorreu a evolução das principais variáveis ao longo dos últimos anos.
No final de 2018, o estoque total de títulos públicos federais registrava o valor de R$ 3,9 tri. Isso significa que houve um aumento de quase 10% no volume da dívida ao longo de 12 meses, na passagem para 2020. Ora, essa elevação no volume total do principal ocorreu em período onde também foram destinados os mencionados R$ 367 bi para pagamento de juros. Uma loucura! Na passagem de 2018 para 2019, algo semelhante ocorreu. O estoque saltou de R$ 3,6 para R$ 3,9 tri, equivalendo um aumento de 9% no total da dívida. Mas ao longo de 2018, o governo federal havia desembolsado R$ 379 bi a títulos de juros. Na passagem 2017 para 2018, o estoque saltou de R$ 3,1 tri para R$ 3,6 tri – uma elevação de 14%. Mas o pagamento de juros, além disso, foi de R$ 401 bi ao longo dos 12 meses de 2017.
Essa é a verdadeira armadilha imposta pelo mecanismo atual da dívida pública federal. Quanto mais se paga de juros, mais aumenta o estoque. A sociedade brasileira acaba por ficar refém de uma verdadeira ditadura do sistema financeiro, uma vez que prevalece um duto que carreia sistematicamente recursos do âmbito do orçamento geral para uma parcela bastante reduzida e altamente privilegiada da população. Isso porque, ao contrário do que ocorre com as despesas públicas com saúde, assistência, educação ou previdência, os gastos com juros beneficiam exclusivamente o topo da nossa escandalosa pirâmide da desigualdade.
Dívida pública: escapar da ditadura do financismo
Enfim, esse é o mesmo modelo que autoriza e estimula o escândalo do “spread” praticado por nossas instituições financeiras. Enquanto a taxa SELIC está na faixa de 4,5% e os bancos cobram taxas anuais superiores a 300% no cartão de crédito ou no cheque especial. O financismo parece gozar de uma aura de impunidade, um setor que tudo pode enquanto a grande maioria da sociedade sofre as agruras da recessão e do desemprego. O maior risco é a tendência a “naturalizar” essas atrocidades e considerá-las como um mal necessário e inescapável
No entanto, apesar de todas essas distorções, é importante registrar que o lançamento de títulos públicos é um mecanismo bastante razoável para o desenvolvimento de política econômica em geral. Afinal, se o governo conta apenas com as receitas tributárias de cada exercício civil, muitas vezes ele se vê obrigado a antecipar essa receita para promover projetos de médio e longo prazo, por exemplo. Ou ainda, ele se utiliza dessa mesma estratégia de compra e/ou venda de títulos públicos para controlar outras variáveis macroeconômicas
Isso significa que necessitamos trazer luz e oxigênio para o debate a respeito da política econômica em geral, e da política fiscal em particular. Ao invés de simplesmente demonizar o uso da dívida pública como instrumento para levar a cabo políticas públicas promotoras do desenvolvimento, cabe às forças progressistas buscar alternativas mais racionais e efetivas para esse fim. O endividamento do Estado, caso utilizado de forma adequada, pode servir a projetos estratégicos que incorporem a redução das desigualdades, a construção de infra estrutura e a consolidação da soberania nacional. Mas para tanto é necessário superar a ditadura imposta pelo financismo sobre o restante da sociedade.
FONTE: OUTRASPALAVRAS
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