Com mudanças em regras fiscais, governo poderia acionar gatilhos para reduzir gastos obrigatórios e aumentar despesas com custeio
O governo e o Congresso Nacional articulam uma mudança nas regras fiscais do País para acionar mais facilmente “gatilhos” de ajuste nas contas públicas, como a proibição a aumentos salariais e a redução de jornada e remuneração de servidores. A alteração evitaria a situação atual de paralisação da máquina pública, pois o governo poderia redirecionar gastos e diminuir o bloqueio de verbas para os ministérios. Para isso, optaria por descumprir a meta fiscal, mas adotaria medidas de ajustes.
A estratégia também planeja descriminalizar um eventual estouro da meta fiscal – valor estabelecido todo o ano pelo governo com o compromisso de manter a dívida pública sob controle.
Hoje, o governo não tem espaço para manobras. Neste ano, a máquina pública corre risco de sofrer um apagão porque a equipe econômica precisou cortar despesas para garantir o cumprimento da meta (que permite rombo de até R$ 139 bilhões), embora haja espaço de sobra para gastos segundo outra regra, a do teto, que limita o avanço das despesas à inflação. O descumprimento da meta é crime, e o presidente da República pode ser responsabilizado.
O conflito entre as diversas regras fiscais tem sido tema recorrente nos debates da equipe econômica. O governo precisa respeitar, ao mesmo tempo, três regras principais: o teto de gastos, a meta de resultado primário (diferença entre o que é gasto e o que é arrecadado) e a regra de ouro do Orçamento – que também criminaliza o gestor e o presidente se houver uso de dinheiro obtido com empréstimos para pagar despesas correntes, como salários e benefícios previdenciários.
O teto de gastos é a única norma que prevê gatilhos automáticos de ajuste em caso de descumprimento. Na situação atual de frustração de receitas, porém, o governo precisou apertar o Orçamento ao máximo para assegurar a meta fiscal. Dessa forma, não há perspectiva de descumprimento do teto. Isso impede que os gatilhos automáticos sejam acionados.
PEC
Para desatar o nó fiscal, um grupo técnico com integrantes de dentro e de fora do governo se debruçou sobre uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) apresentada em 2018 pelo deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), que muda a regra de ouro. O texto, que começará a dar os primeiros passos nesta semana na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, deve ganhar uma roupagem mais ampla para servir ao redesenho das regras fiscais pretendido pelo governo.
O presidente da CCJ da Câmara, Felipe Francischini (PSL-PR), designou como relator da proposta o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ). A votação deve ocorrer em breve, pois o tema é considerado prioridade pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Em seguida, o texto vai à Comissão Especial, que discutirá as mudanças. O relator será o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES).
Em entrevista ao Estadão/Broadcast, Rigoni conta que a estratégia do grupo de trabalho se divide em duas frentes. A primeira delas é alterar as regras para antecipar o acionamento dos gatilhos do teto de gastos, em acordo com o que já está na PEC de Pedro Paulo. Ainda não está definido qual será a referência para o disparo das medidas de ajuste, se continuará sendo a regra de ouro (como na proposta original) ou se mudará para outro indicador, como despesas obrigatórias.
O contínuo avanço das despesas obrigatórias, que o governo não pode deixar de executar (como salários e benefícios previdenciários), é hoje o principal fator de pressão sobre o Orçamento enfrentado pelo governo.
“Para ser o mais rápido e o mais eficaz, a gente não sabe se o indicador central precisa ser regra de ouro ou se pode ser outras coisas, como despesa obrigatória, resultado primário”, afirma Rigoni.
Ao mesmo tempo, a proposta passa pela descriminalização da violação das regras. Nos últimos 19 anos, a meta precisou ser mudada em 11 deles para evitar que o presidente da República fosse punido por seu descumprimento.
Alguns dos gatilhos mais “poderosos”, segundo Rigoni, são a redução de jornada e salários de servidores e a desvinculação de recursos que sobram a cada ano em diversos fundos do governo federal. “São 260 fundos que estão com dinheiro parado, R$ 350 bilhões”, diz.
A área econômica avalia que a liberação mais rápida dos gatilhos tornará a gestão do Orçamento mais eficiente. Os contingenciamentos penalizam sobretudo os investimentos, um tipo de gasto que tem mais poder para alavancar a atividade econômica. Economistas de diferentes correntes ideológicas têm defendido a necessidade de um “impulso fiscal” por meio de investimentos num momento em que a retomada do crescimento ainda patina.
Segunda fase
Em outra frente, o grupo técnico já discute um novo conjunto de regras para vigorar a partir de 2026, quando a própria emenda do teto de gastos permite que ele seja revisado. “O teto que temos é muito rígido, e precisava ser para a gente conseguir alguma estabilidade fiscal. Agora, para médio e longo prazo, a gente que acha que pode ter um quadro de despesas relacionado a um indicador supersimples. Por exemplo, despesa obrigatória, ou resultado primário”, explica Rigoni.
Segundo o deputado, a intenção é que o Brasil passe a trabalhar com uma espécie de quadro plurianual de despesas, como na Suécia e outros países que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nesse modelo, o governo discutiria hoje o teto para as despesas a serem desembolsadas daqui dois anos. O limite poderia ser revisto, com a definição de subtetos, um ano antes da execução orçamentária.
“Você impõe ao Congresso uma discussão de prioridades e consegue antecipar problemas. Se eu fizer concurso para selecionar 10 mil agentes da Polícia Federal, saberia que dali três anos vai estourar o teto”, exemplifica.
O quadro de despesas estaria associado a uma âncora de dívida, que não seria uma meta ou um limite de endividamento (como existe nos Estados Unidos), mas sim um valor de referência para guiar a condução da política fiscal do País.
“Para médio e longo prazo, depois dessa transição inicial que vai ser alinhada ao teto de gastos, precisamos de uma regra operacional facílima e simples de ser calculada, com gatilhos claros para que, se for estourada, o governo tenha consequências, e não o governante como é hoje”, afirma Rigoni. “Temos que dar capacidade ao governo de reduzir suas despesas obrigatórias sem paralisar a máquina”, diz.
Gatilhos mais rápidos
O que os gatilhos do teto proíbem?
-
Concessão de qualquer vantagem, aumento ou reajuste salarial para servidores.
-
Adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação (por exemplo, a concessão de um aumento real no mínimo).
-
Criação de cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa.
-
Alteração de estrutura de carreira que aumente gastos.
-
Admissão ou contratação de pessoal, à exceção das reposições de cargos de chefia e direção (sem elevar despesa) ou das reposições de cargos efetivos que vierem a ficar vagos.
-
Realização de concursos públicos, exceto para reposições de cargos efetivos vagos.
-
Criação ou majoração de auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação e outros benefícios.
-
Criação de nova despesa obrigatória.
-
Criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, bem como perdão, renegociação ou refinanciamento de dívidas que levem a alta nos subsídios.
-
Concessão qualquer novo benefício tributário, ou mesmo ampliação.
Que outros gatilhos a nova PEC pode criar?
-
Suspensão temporária de repasses do FAT para o BNDES.
-
Aval à redução temporária de jornada e salário de servidor
-
Corte de ao menos 20% nas despesas com cargos em comissão e de confiança.
-
Exoneração de servidores não estáveis.
-
Redução de despesa com publicidade e propaganda em pelo menos 20%.
-
Corte de benefícios tributários.
-
Desvinculação de recursos parados em fundos do governo para abater dívida pública
Principais regras fiscais que o governo precisa cumprir
Meta fiscal
O resultado primário é calculado pela diferença entre as despesas do governo (com pagamento de pessoal, Previdência, custeio e investimentos) e as receitas com os tributos. Para este ano, o governo vai gastar mais que arrecadar - portanto, a meta permite um resultado negativo em até R$ 139 bilhões.
Teto de gastos
Criado no governo do ex-presidente Michel Temer, limita o avanço das despesas à variação da inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior. De junho de 2018 a julho de 2019, esse índice ficou em 3,37%, porcentual que corrigirá o teto em 2020.
Regra de ouro
Impede o governo federal de se endividar para pagar despesas correntes, como salários, Previdência Social e benefícios assistenciais. A exceção é se o Congresso conceder uma autorização especial para emitir dívida e usar esse dinheiro para pagar aposentadorias, salários e Bolsa Família. Para o ano que vem, o governo vai precisar de um crédito extra de R$ 367 bilhões.
Fonte: Estadão
Comente esta Notícia