Talvez a mais insidiosa das mentiras seja a meia verdade, aquela que usa uma verdade para chegar a uma conclusão enganosa. Há anos que se faz, no Brasil, o correto diagnóstico do “manicômio tributário” vigente, para ficarmos no termo cunhado pelo ex-deputado Luiz Carlos Hauly. Há anos também abundam propostas para mudar isso.
Nossa maneira de tributar é muito perversa, por três motivos: tributa as pessoas erradas — tributa-se demais os mais pobres e de menos os mais ricos; tributa de maneira complexa — é muito difícil entender, processar e pagar de forma correta o tributo; e tributa desigualmente os iguais — há bastante espaço para o uso da força política para reduzir a tributação via benefícios e renúncias fiscais. Estes três fatores são motores da corrupção e da desigualdade brasileiras, criando uma “casta” de privilegiados unidos aos políticos como irmãos siameses.
Assim, à medida em que percebemos essas iniquidades e a indignação de estar no lado “perdedor” dos fatores acima — e o lado “vencedor” é menor que 0,1% da população brasileira — se gera a indignação necessária para juntarmos força para mudar o sistema tributário. Pois esse sistema atual tem que mudar, e qualquer melhoria já ajuda. Qualquer mudança no que é muito ruim é sempre para melhor, certo? Certo?
A Reforma Tributária do Congresso Nacional
Esbarramos logo de cara no primeiro problema. Se alardeia na mídia que o Brasil tem que fazer agora “A reforma tributária”. Ora, somente no congresso já tramitam duas propostas de reforma tributária — a PEC 110/2019, no Senado, reedição da proposta do ex-deputado Hauly, e a PEC 45/2019, na Câmara, que é a proposta do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), assinada pelo economista Bernardo Appy. Se há mais de uma reforma tributária em pauta (isso sem contar nas várias propostas que não estão no congresso), porque insistimos em falar n’A Reforma?
Chegar n’A Reforma é simples. Durante a discussão de reforma da previdência, várias propostas foram ventiladas, até chegarmos na proposta que efetivamente foi eleita como “A reforma da previdência” pelos políticos e pela grande mídia: a PEC 6/2019. Assim, “A Reforma”, é aquela que tem mais espaço na mídia, pois é a que tem mais chance de efetivamente virar lei. Assim, quando tratamos da reforma tributária do Congresso Nacional, temos que invariavelmente nos debruçar sobre a PEC 45/2019.
Esta PEC propõe transformar uma série de tributos em dois — o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), e os Impostos Seletivos (IS). O IBS, segundo a proposta, atingirá amplamente todos os bens e serviços, e terá uma alíquota padrão para todos os bens e serviços, e sua arrecadação será repartida entre União, Estados e Municípios, destinado a substituir os atuais PIS/COFINS, IPI, ICMS e ISS. Já os IS destinam-se a sobretaxar aqueles produtos que o governo federal decidir que devem ter uma carga tributária maior que a do IBS, substituindo a CIDE-Combustíveis, e as alíquotas maiores de IPI e ICMS para bens como cigarros, bebidas, armas e munições, energia elétrica, e outros.
Leia sempre as letras miúdas
A ideia geral parece muito boa — afinal, a PEC 45 ataca dois dos três problemas citados na introdução desse artigo — mas uma coisa que a vida ensina é que devemos sempre ler as letras miúdas daquilo que assinamos. No caso da PEC 45, é ler atentamente todos os dispositivos. Chamo a atenção para alguns deles:
“ART. 159-A. A ALÍQUOTA DO IMPOSTO SOBRE BENS E SERVIÇOS FIXADA PELA UNIÃO SERÁ FORMADA PELA SOMA DAS ALÍQUOTAS SINGULARES VINCULADAS ÀS SEGUINTES DESTINAÇÕES:
I — SEGURIDADE SOCIAL;
II — FINANCIAMENTO DO PROGRAMA DO SEGURO-DESEMPREGO E DO ABONO DE QUE TRATA O § 3º DO ART. 239;
III — FINANCIAMENTO DE PROGRAMAS DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, NOS TERMOS DO § 1º DO ART. 239;
IV — FUNDO DE PARTICIPAÇÃO DOS ESTADOS;
V — FUNDO DE PARTICIPAÇÃO DOS MUNICÍPIOS;
VI — PROGRAMAS DE FINANCIAMENTO AO SETOR PRODUTIVO DAS REGIÕES NORTE, NORDESTE E CENTRO-OESTE, NOS TERMOS DO ART. 159, I, “C”;
VII — TRANSFERÊNCIA AOS ESTADOS E AO DISTRITO FEDERAL, PROPORCIONALMENTE AO VALOR DAS RESPECTIVAS EXPORTAÇÕES DE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS;
VIII — MANUTENÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO ENSINO;
IX — AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE;
X — RECURSOS NÃO VINCULADOS, SENDO A ALÍQUOTA SINGULAR ASSOCIADA A ESTA DESTINAÇÃO CORRESPONDENTE À DIFERENÇA ENTRE A ALÍQUOTA FEDERAL DO IMPOSTO E AS ALÍQUOTAS SINGULARES A QUE SE REFEREM OS INCISOS I A IX DESTE ARTIGO”
A alíquota do IBS deve atender 9 destinações que hoje são cobertas por vários dispositivos constitucionais, e aquilo que não possuir uma destinação específica fica como “recursos não vinculados”, ou seja, dinheiro livre pro governo aplicar como desejar. Dentre essas destinações, destaco a I — Seguridade Social, VIII — Educação, e IX — Saúde. Até aqui, tudo certo.
“ART. 159-E…………….. ……………………………………..
PARÁGRAFO ÚNICO. AS ALÍQUOTAS SINGULARES PODERÃO SER ALTERADAS POR LEI DA RESPECTIVA UNIDADE FEDERADA, OBSERVADAS AS SEGUINTES RESTRIÇÕES:
I — AS ALÍQUOTAS SINGULARES RELATIVAS ÀS DESTINAÇÕES DE QUE TRATAM OS INCISOS IV A VII DO ART. 159-A E O INCISO III DO ART. 159-B NÃO PODERÃO SER FIXADAS EM PERCENTUAL INFERIOR AO DAS RESPECTIVAS ALÍQUOTAS SINGULARES DE REFERÊNCIA, APURADAS NOS TERMOS DO ART. 119 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS;”
Este dispositivo autoriza o governo federal a definir livremente as alíquotas das destinações anteriores, mas estabelece um piso para os incisos IV a VII. Percebe-se, de pronto, que o inciso I (Seguridade Social) não possui piso, portanto pode ser reduzida a qualquer valor (inclusive zero), com todos os recursos retirados dessa alíquota se revertendo em “recursos não vinculados”. Lembra daquele discurso de “precisamos reformar a previdência pois a mesma tem déficit”? Se a PEC 45 for aprovada do jeito que está, basta ao governante de plantão reduzir a alíquota singular da Seguridade Social para fabricar um novo déficit e justificar uma nova retirada de direitos. E os ataques aos gastos sociais continuam no inciso II do mesmo artigo:
“II — A SOMA DAS ALÍQUOTAS SINGULARES DE QUE TRATAM OS INCISOS VIII E IX DO ART. 159-A NÃO PODERÁ SER FIXADA EM PERCENTUAL INFERIOR AO DA SOMA DAS RESPECTIVAS ALÍQUOTAS SINGULARES DE REFERÊNCIA, APURADAS NOS TERMOS DO ART. 119 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS;”
(…)
“ART. 198. …………………………………………………………..
§ 2º ALÉM DOS RECURSOS A QUE SE REFEREM O INCISO IX DO ART. 159-A, O INCISO II DO ART. 159-B E O INCISO II DO ART.159-C, A UNIÃO, OS ESTADOS, O DISTRITO FEDERAL E OS MUNICÍPIOS APLICARÃO, ANUALMENTE, EM AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE RECURSOS MÍNIMOS DERIVADOS DA APLICAÇÃO DE PERCENTUAIS CALCULADOS SOBRE:
I — NO CASO DA UNIÃO, A RECEITA CORRENTE LÍQUIDA DO RESPECTIVO EXERCÍCIO FINANCEIRO, EXCLUÍDA AQUELA RELATIVA AO IMPOSTO DE QUE TRATA O ART. 152-A, NÃO PODENDO SER INFERIOR A 15% (QUINZE POR CENTO);
(…)
“ART. 212. A UNIÃO APLICARÁ, ANUALMENTE, NUNCA MENOS DE DEZOITO, E OS ESTADOS, O DISTRITO FEDERAL E OS MUNICÍPIOS VINTE E CINCO POR CENTO, NO MÍNIMO, DA RECEITA RESULTANTE DE IMPOSTOS, COMPREENDIDA A PROVENIENTE DE TRANSFERÊNCIAS, NA MANUTENÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO ENSINO.
§ 7º A DESTINAÇÃO PREVISTA NO CAPUT:
I — NÃO SE APLICA À RECEITA PRÓPRIA DA UNIÃO, DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL E DOS MUNICÍPIOS COM O IMPOSTO DE QUE TRATA O ART. 152-A;
II — INCLUI OS VALORES A QUE SE REFEREM O INCISO VIII DO ART. 159-A, O INCISO I DO ART. 159-B E O INCISO I DO ART. 159-C.”
Aqui, o ataque é mais sofisticado que o previsto para a Seguridade Social. Há uma intricada engenharia para dissimular a desvinculação de recursos para a saúde. Tentarei explicitar da melhor forma no texto a seguir.
O primeiro dispositivo (inciso II do parágrafo único do Art 159–E) diz que a soma dos valores destinados à educação e saúde no IBS não pode ser inferior à soma dos valores de referência, calculados com base nas destinações atuais. Portanto, se estabelece um piso conjunto para educação e saúde, mas se dá liberdade, em tese, para o governo reduzir o valor destinado a educação se aumentar o valor da saúde, e vice-versa.
O motivo dessa liberdade se observa na leitura conjunta dos artigos 198 e 212. A nova redação do 198 exclui o IBS do cálculo do mínimo constitucional para a saúde, aplicando o mesmo apenas para os demais tributos. Não importa se o governo aplica 15% da sua alíquota do IBS (valor de referência) na saúde, se aplica mais que isso ou se zerou a alíquota singular da saúde (permitido, desde que aumente educação): o valor a destinado a saúde considerará somente os demais tributos.
Já o artigo 212 é diferente: Ele não aplica o multiplicador direto (18% na união, 25% nos estados e municípios) no valor global do IBS, mas considera os valores destinados à educação no IBS através da alíquota singular como parte do cálculo global. Em outras palavras, se o governo manter a alíquota singular da educação no nível de referência não há diferença para a situação atual, mas se reduzir essa alíquota ele deverá destinar mais dinheiro dos demais tributos para educação, e se aumentar essa alíquota ele precisará destinar menos dinheiro dos demais tributos para educação.
Estes três dispositivos juntos (art 159-E, Art 198 e art 212) resultam no seguinte: os governos poderão zerar a alíquota singular da saúde, “transferindo” esses recursos para a educação. Esses recursos “transferidos” contam para o mínimo da educação, portanto liberam recursos dos demais tributos. Assim, o governo simplesmente tira recursos da saúde para empregar como bem entender.
A PEC 45/2019 libera o Governo para retirar recursos que hoje estão constitucionalmente garantidos para a Seguridade Social e para a Saúde. Isso poderá ser usado como justificativa para privatizações e novas reformas que tirem mais direitos.
Defender uma reforma tributária tem que passar por uma real solução para os três problemas indicados no diagnóstico: tributar progressivamente, com simplicidade e equidade. A PEC 45/2019 não ataca todos esses problemas, e acaba aprofundando as desigualdades brasileiras ao permitir um retrocesso nos gastos sociais. Há, sim propostas alternativas para discutirmos, se desejemos fazer “A” reforma tributária correta, que beneficie o Brasil de 99% dos brasileiros.
Fonte: Pensar Piauí
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