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Em 40 anos, metade dos EUA ganhou só US$ 200 a mais

  • 01 de agosto de 2019
Desde os anos 1980, total de americanos em famílias da classe média (com renda anual próxima a US$ 78,5 mil) encolheu de 60% para 50%
 
Quem for à casa de shows Carnegie Hall ou visitar o museu Frick Collection, ambos em Nova York, estará diante da materialização da fortuna de dois dos homens mais ricos que os Estados Unidos já produziram.
 
Mas também do legado de duas das figuras mais odiadas pelo movimento sindical norte-americano e protagonistas de um sangrento episódio de luta de classes na região de Pittsburgh, na Pensilvânia.
 
Em 6 de julho de 1892, o industrial do aço Andrew Carnegie (1835-1919) e seu então executivo Henry Frick (1849-1919) enviaram uma milícia armada contra trabalhadores em greve na Carnegie Steel Company, no episódio que ficaria conhecido como a Batalha de Homestead.
 
Ao fim do dia, a ação contra o movimento por melhores salários resultaria em dez mortes e 44 anos correriam até que os sindicatos locais se reorganizassem novamente.
 
Nesse intervalo, marcado pelo esvaziamento dos movimentos de trabalhadores nos EUA, o país assistiria a uma forte concentração de renda.
 
Foi quando Carnegie e Frick levantaram fortunas baseadas em siderúrgicas que transformaram Pittsburgh na maior região produtora de aço do mundo até os anos 1970.
 
Nas últimas décadas, Pittsburgh deu lugar a centenas de empresas de serviços e tecnologia. Na maioria delas, os trabalhadores jamais viram um sindicato pela frente.
 
Mas a primeira siderúrgica de Carnegie, a Edgar Thomson, agora parte da USS Steel, segue viva desde 1872 no distrito vizinho de Braddock.
 
Ela emprega hoje cerca de 550 trabalhadores, uma fração dos milhares de metalúrgicos do passado de Pittsburgh.
 
Em pouco mais de meio século, a cidade viu sua população encolher à metade, para 302 mil pessoas levando vizinhanças como Braddock a uma profunda decadência.
 
"Meu bisavô, meu avô e meu pai trabalharam nessa siderúrgica. Toda essa área era repleta de famílias da classe trabalhadora. Com o declínio da usina, isso acabou", diz Isaac Bunn, 49, dono da última casa em pé nas proximidades da Edgar Thomson.
 
O que se vê ali não é muito diferente do cenário em outros estados industriais decadentes do chamado "rust belt" (cinturão da ferrugem), como Michigan e sua Detroit, ou em áreas de Ohio, Indiana, Iowa ou Wisconsin.
 
Em 2016, todos eles votaram em Donald Trump acreditando que a América pode voltar a ser "grande novamente".
 
"Trump promete recuperar setores como o nosso, e é dai que vem o voto nele. Tarifas de importação ajudam nossa indústria e, por tabela, os trabalhadores", diz John Gornall, presidente do sindicato dos siderúrgicos em Braddock.
 
Todo o entorno da sede do sindicato e a colina de onde se vê a fumaça da Edgar Thomson são repletos de casas e imóveis comerciais abandonados, que dão a Braddock um ar de filme de zumbi.
 
Andando por ali, é quase difícil lembrar que ainda se trata do país mais rico do mundo.
 
Mas o que Braddock e esses estados industriais têm realmente em comum com o resto dos EUA é a estagnação duradoura da renda do trabalho e o aumento da desigualdade.
 
Além do encolhimento da classe média e de seu gigantesco endividamento, isso tem levado a uma ampliação cada vez mais acentuada da distância entre os trabalhadores americanos e os chamados super-ricos.
 
Em nenhum outro país do mundo houve uma inversão tão chocante da distribuição de renda como nos EUA das últimas décadas.
 
Essa troca de sinal, iniciada nos anos 1980 e acelerada na década de 1990, coincidiu com a forte desregulamentação do mercado financeiro no país que engendraria, anos depois, a crise de endividamento de 2008-2009.
 
Nos EUA, classe média e mais pobres perdem participação para ricos e muito ricos
Hoje, o 1% mais rico nos EUA captura o equivalente a toda a renda que antes ficava com a metade mais pobre. Essa, por sua vez, viu sua participação no total de rendimentos cair quase à metade, para 12,5%.
 
Enquanto os super-ricos prosperaram, os EUA convivem há quase 40 anos com a estagnação da renda da sua metade mais pobre.

 

De 1980 para cá, o valor médio dos rendimentos anuais brutos desse segmento aumentou meros US$ 200 (R$ 760), para US$ 16,6 mil ao ano.
 
Ao mesmo tempo, a renda média anual bruta dos 10% mais ricos dobrou (para US$ 311 mil); e a do 1% no topo triplicou (US$ 1,3 milhão).
 
Já a classe média (os 40% "do meio" entre ricos e pobres) teve um aumento em sua renda pouco superior a 40%, o que a empobreceu relativamente aos estratos mais ricos, segundo dados do Relatório da Desigualdade Global, da equipe do economista francês Thomas Piketty.
 
O think tank Pew Research Center, de Washington, estima que, ao longo desse período, o total de americanos em famílias da classe média (com renda anual média próxima a US$ 78,5 mil) tenha encolhido de 60% para cerca de 50%, e que boa parte dos que saíram dela tenha empobrecido.
 
O pesquisador Rakesh Kochhar, do Pew Research, cita algumas das razões para a estagnação da renda dos mais pobres e da perda de relevância da classe média: declínio dos sindicatos, que viram o número de filiados minguar à metade desde os anos 1980; encolhimento do setor industrial; a globalização que levou empresas a outros países; e a tecnologia e a automação.
 
Outros estudos ressaltam também como motivo mais recente a ascensão das chamadas empresas "superstars".
 
Nos últimos 20 anos, a fatia de mercado dominada por companhias líderes em seus setores aumentou 75%. O movimento teria reduzido substancialmente não apenas a competição empresarial, mas também os salários dos trabalhadores.
 
Para o economista Branko Milanovic, um dos maiores especialistas no tema hoje, o termo "desigualdade" começa a se tornar quase obsoleto diante do que ocorre com a distribuição da renda nos EUA e na maior parte dos países, sobretudo no Ocidente.
 
"A palavra mais adequada hoje é polarização entre pobres e ricos", diz Milanovic.
 
"E é comum as pessoas se perguntarem qual o programa para as classes médias. O fato é que não há nenhum coerente, e o resultado que temos é o chamado voto de protesto."
 
A desigualdade e o medo das classes médias em perder status, segundo ele, estariam determinando cada vez mais as escolhas do eleitorado. E elas quase sempre têm desaguado em propostas e candidaturas no campo populista.
 
Dos dez estados norte-americanos onde a classe média ainda predomina, reunindo mais de 60% da população, oito votaram em Trump em 2016, incluindo a Pensilvânia.
 
É neles, que já foram relativamente ricos, onde a decadência tem sido mais aguda.
 
O morador de Braddock Lou Berry, 59, por exemplo, diz conviver com várias frustrações depois de ter trabalhado a vida inteira. Principalmente por causa de seu último emprego em um grande hospital de Pittsburgh, com o qual ainda tem dívidas por conta de um tratamento de saúde.
 
Berry diz que hoje só tem onde morar porque herdou da mãe a casa onde vive.
 
"Em 1979, quando ainda havia muitos empregos ligados a sindicatos, trabalhava na Westinghouse Electric e ganhava US$ 8 a hora. Podia comprar o que quisesse", diz Berry.
 
"Trinta e cinco anos depois, meu salário no hospital era de US$ 8,50 a hora. Muitas vezes tive de escolher entre remédios ou alimentos."
 
Não muito longe de sua casa, em outra rua com imóveis caindo aos pedaços, o policial aposentado Harrold Reichert, 67, conta histórias parecidas.
 
"Anos atrás tínhamos mais dinheiro, e parece que ele rendia mais, durava mais. Para mim, chega a ser surpreendente que tantas pessoas ainda venham aguentando tudo isso por todo esse tempo", diz.
 
A decadência em estados relevantes e a concentração da renda parecem contradizer dados positivos na superfície norte-americana como os últimos dez anos de crescimento ininterrupto e o desemprego abaixo de 4%.
 
Mas esse vigor esconde duas realidades preocupantes.
 
A primeira é que o endividamento das famílias sobe sem parar, revelando a incapacidade crônica de fecharem o mês, apesar do desemprego baixo. A inflação também não aumenta, mesmo com o juro baixo, o que indica renda e demanda insuficientes.
 
Somadas, as dívidas dos domicílios americanos chegam a US$ 13,5 trilhões, e já estão quase US$ 1 trilhão (mais do que a metade do PIB do Brasil) acima de 2008, quando a crise de endividamento, sobretudo imobiliário, explodiu.
 
De acordo com o Fed (o banco central dos EUA), cerca de 40% dos adultos no país não têm nenhum caixa para emergências superior a US$ 400.
 
A segunda é que o aumento do PIB nos últimos dez anos (25%) equivale a pouco mais da metade do registrado no período anterior de crescimento de mesma longevidade, entre 1991 e 2001.
 
Nos dois ciclos, o crescimento esteve amplamente apoiado em saltos de produtividade que não significaram ganhos aos trabalhadores. Mas concentração de rendimentos para altos executivos.
 
Desde meados dos anos 1970, a produtividade norte-americana saltou 77%, mas o valor médio da hora trabalhada em todos os estratos aumentou apenas 12%.
 
Tomando-se apenas o salário mínimo federal como referência, ele poderia valer hoje US$ 20 a hora não US$ 7,25 se tivesse acompanhado a produtividade.
 
No Congresso, os democratas agora pressionam para que esse valor alcance US$ 15 até 2024, indexando os rendimentos nacionais nesse piso. Mas há inúmeras resistências ao projeto, tanto de empresas quanto dos republicanos.
 
Para Kochhar, do Pew Research Center, além de ter seus impactos políticos, a estagnação da renda dos mais pobres nos EUA já se transformou em uma preocupação macroeconômica relevante para o médio e longo prazos.
 
"Uma das consequências da desigualdade em alta é que ela tende a gerar crescimento mais lento, já que a demanda geral na economia cai devido à renda concentrada no topo que flui para um número cada vez menor de pessoas", diz o economista.
 
Outros dois pontos sinalizados no Relatório da Desigualdade Global são cruciais sobre a natureza da concentração da renda nos EUA e suas implicações sobre o crescimento.
 
A estagnação dos rendimentos entre os 50% mais pobres não é consequência do envelhecimento da população.
 
Ao contrário, é entre os mais velhos que a renda cresce mais, revelando que os jovens, na prática, estão perdendo rendimentos em termos relativos com o tempo.
 
Isso não só compromete a demanda futura como pode tornar impagável a dívida em créditos estudantis no país, considerada por muitos como uma nova "bomba-relógio". Hoje ela passa do US$ 1,5 trilhão e envolve 45 milhões de norte-americanos.
 
Na outra ponta, entre os mais ricos, enquanto os ganhos nas décadas de 1980 e 1990 ainda eram baseados sobretudo na renda do trabalho, a partir dos anos 2000 o salto ocorreu principalmente nos ganhos de capital.
 
São rendimentos em negócios e aplicações financeiras que não necessariamente impactam na produção de bens físicos e no emprego e que contribuem para acelerar o aumento da desigualdade.
 
No que os especialistas concordam é que uma das principais providências para atacar a desigualdade nos EUA e em outros países seria uma taxação mais progressiva sobre a renda e, principalmente, sobre ganhos de capital.
 
Mas a tributação norte-americana tem sido cada vez menos progressiva desde a década de 1960. E se tornou ainda mais favorável aos super-ricos com os cortes de impostos adotados desde que Trump assumiu a Casa Branca.
 
"Trump foi eleito com o discurso de que faria a economia trabalhar para os 50% de baixo, mas o que tem feito vai contra os interesses deles. O corte de impostos para os mais ricos é só mais uma evidência de que a desigualdade nos EUA seguirá aumentando", diz Lucas Chancel, coordenador do Relatório da Desigualdade Global.
 
Fonte: Folha de São Paulo 
   
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