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Sem regra de transição, Reforma da Previdência será nula

  • 12 de junho de 2019
Na primeira semana de junho, em manifestação no Congresso Nacional e para defender a proposta governista de Reforma da Previdência, o Ministro Paulo Guedes apontou um inimigo a ser abatido: o gato gordo.
 
Se não fosse trágico, seria cômico. Mas o grotesco tem sido a via preferencial de interlocução do governo federal com a sociedade brasileira e o gato gordo foi incluído no repertório folclórico que já abriga desde goiabeira até performance artística, passando por delírios terraplanistas, dentre muitos outros estratagemas midiáticos voltados ora à captação ora ao desvio das atenções.
 
A comunicação de choque é sem dúvida um caminho impactante, que tem a capacidade de atrair a atenção do interlocutor. Contudo, é instrumento que deve ser usado com parcimônia, pois o abuso, notadamente para o trato de temas sérios, provoca, com o tempo, duas reações certas do público: a indiferença e a perda de credibilidade.
 
O recurso frequente à comunicação de choque produz indiferença porque sua utilização repetida naturaliza o insólito e deixa de chamar a atenção dos receptores da mensagem; abala a credibilidade, de outra parte, na medida em que o emissor da mensagem desmoraliza o próprio discurso ao tratar o outro de modo jocoso ou desproporcionalmente depreciativo.
 
Pois nesse exercício repetitivo de apelo ao grotesco a que temos sido submetidos pelo Governo Bolsonaro, o gato gordo do Ministro Guedes, além de margear a indiferença e minar a confiança na mensagem transmitida, retrata o vazio de argumentos do governo para a proposição da PEC 06/2019 sem regra de transição para quem já é trabalhador ou servidor público.
 
O gato gordo, aquele bicho indolente, espertalhão e aproveitador, é para o Ministro da Fazenda o retrato do(a) trabalhador(a) que requer ou recebe benefício de aposentadoria antes dos 65 anos de idade. É também a figura daquele(a) que, com 48 anos de idade ou mais, e já próximo(a) de completar 30 ou 35 anos de trabalho, pretende que o Congresso insira no texto da Reforma da Previdência regra de transição apta a modular a passagem para a inatividade desse segmento de trabalhadores.
 
Se o Ministro quis chamar a atenção para o perigo que esse animal trabalhador- público ou privado- representa para o país, de cara escolheu o bicho errado como imagem do risco. Afinal, o gato, em especial o gordo, é um bicho de estimação, daqueles considerados membros da família; é bonito, tranquilão e não tem histórico de perturbador. Como poder ser o símbolo do caos?
 
Afinal, quem está com a razão não precisa apelar pra ignorância.
 
Depois, o esforço para desprestigiar o trabalhador, associando-o à figura de um animal, preconceituosamente retratado como indolente e aproveitador, dado o intento desrespeitoso e agressivo da mensagem, mina a credibilidade do discurso governamental. Afinal, quem está com a razão não precisa apelar pra ignorância.
 
Nessa disputa de narrativas que envolve o debate sobre a Reforma da Previdência, é preciso compreender que a fixação de regra de transição não é uma escolha juridicamente possível para o governante ou mesmo para o legislador. Pelo menos não dentro da constitucionalidade democrática.
 
Não há bravata ministerial que exclua do mundo jurídico o primado da legítima expectativa, da justa expectativa, da proteção da confiança, da segurança jurídica, conceitos de forte conteúdo ético que talvez o olhar unicamente monetarista não possa alcançar.
 
Ao adotar princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho, a legalidade e a moralidade, o Estado brasileiro compromete-se com valores que compõem o chamado Estado Democrático de Direito, onde há limites para a ação estatal.
 
Dentre os limites próprios ou ínsitos ao Estado Democrático de Direito encontramos o princípio da Justa Expectativa, da Proteção da Confiança ou da Segurança Jurídica.
 
O Princípio da Justa Expectativa ou da Proteção da Confiança impõe a ação proba e responsável do Estado, o que importa o respeito à Justa Expectativa de ter respeitado um direito legalmente prometido, de ver honrado um compromisso formalmente assumido.
 
Daí que pretender mudar as regras do jogo da aposentadoria sem o estabelecimento de regra de transição para quem ingressou na vida laboral antes da Reforma é conduta estatal juridicamente inaceitável, porque equivalente à improbidade, ao passa-moleque, ao calote aplicado contra o cidadão.
 
Eventual aprovação da Reforma da Previdência sem a previsão de norma de transição, aliás, tende a ter como resultado o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, o que, na prática, equivalerá à rejeição integral da Reforma para todo aquele que já tiver ingressado no serviço público ou no mercado privado de trabalho antes da promulgação do texto.
 
O mesmo vale para a proposição de norma factoide de transição, ou seja, para o caso de apresentação de norma de transição que não atenda os sensos de razoabilidade e proporcionalidade. A exigência, por exemplo, de sobretrabalho de 100% do tempo de contribuição faltante para garantir a aposentadoria, como divulgado na imprensa nos últimos dias, encaixa-se, a nosso juízo, nessa caracterização do factoide, uma vez que o percentual indicado extrapola em muito o sentido de razoabilidade.
 
A proposta de Reforma da Previdência encaminhada ao Congresso pelo governo Bolsonaro não incluiu regra de transição, ou seja, não previu norma moduladora da passagem para o novo regramento, respeitando o tempo de serviço já prestado na sistemática em vigor. O texto até nomina algumas regras como de transição. Mas são dispositivos tão despropositados que não podem ser reconhecidos nem sequer como factoides. E, tanto é fato que o texto não contempla regra de transição que o Ministro Paulo Guedes, contrário à inserção de qualquer norma de modulação, tirou o gato gordo de sua pouco criativa cartola na intenção de refrear iniciativa de congressistas de dar trato legal ao texto, inserindo-lhe regras de transição.
 
Notadamente para os trabalhadores do regime próprio de previdência, que são os funcionários públicos, é preciso considerar que todos aqueles que entraram, por concurso público, antes de dezembro de 2003 no serviço público, fizeram-no com a expectativa legal de obtenção de aposentadoria equivalente à integralidade dos vencimentos ao completarem 30 ou 35 anos de serviço (mulheres e homens, respectivamente). Com a reforma de 2003 se lhes impôs o limitador da idade antes inexistente, que recebeu modulação.
 
Afinal, o Estado brasileiro estabeleceu um compromisso público e legal com esses trabalhadores que não pode ser simplesmente ignorado passado tanto tempo.
 
Nesse universo de servidores, portanto, há quem nutra essa expectativa há mais de 30 anos, de modo que se já é discutível a imposição de um segundo gravame além do advindo da reforma precedente, a previsão de regra de transição indubitavelmente é obrigatória, sob pena de nulidade, por inconstitucionalidade, da Reforma. O mesmo vale para os que ingressaram depois de 2003 na expectativa de aposentação aos 55 anos (mulheres) e 60 anos(homens). Afinal, o Estado brasileiro estabeleceu um compromisso público e legal com esses trabalhadores que não pode ser simplesmente ignorado passado tanto tempo.
 
O tema da Justa Expectativa ou da Proteção da Confiança é matéria de reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal, de modo que as considerações aqui expostas não são elucubração retórica ou tão somente doutrinária, mas matéria assentada no trato jurisprudencial da mais alta Corte do país que, ao fim e ao cabo, se não houver bom senso legislativo, será instada a fazer valer o Estado Constitucional de Direito.
 
Para que não reste dúvida quanto ao dever constitucional de observância do Princípio da Justa Expectativa aos olhos do Supremo Tribunal Federal, reproduzimos alguns trechos de decisões proferidas nos últimos anos e que abordaram o tema:
 
“O princípio da segurança jurídica (CRFB, art. 5º, XXXVI) interdita condutas estatais que frustrem expectativas legítimas despertadas no cidadão por atos do próprio Poder Público (...). (...) o constituinte originário de 1988 instituiu um amplo arcabouço normativo que confere lastro constitucional ao postulado da segurança jurídica: encontra-se implícito à cláusula do Estado Democrático de Direito (CRFB, art. 1º., caput), bem como está expressamente reconhecido no rol dos direitos individuais (CRFB, art. 5º. caput), dos direitos sociais (CRFB, art. 6º., caput). Além disso, pode ser extraído de inúmeras disposições constitucionais, tais como o princípio da legalidade (CRFB, art. 5º, II e art. 37, caput), da tutela do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (CRFB/88, art. 5º, XXXVI) e das garantias da irretroatividade e da anterioridade tributária (CRFB, art. 150, III, alíneas a e b).”MS 26387 MC-AgR/DF, Relator Min. Luiz Fux.
 
“A proteção da segurança jurídica designa um conjunto abrangente de ideias e conteúdos, que se encontram positivados em dispositivos da Constituição de 1988, como os que preveem o direito à segurança (CF/88, art. 5º, caput) e a proteção ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito (CF/88, art. 5º, XXXVI). Do ponto de vista objetivo, ela se refere (i) à anterioridade das normas jurídicas em relação às situações às quais se dirigem, (ii) à estabilidade do direito, que deve ter como traço geral a permanência e continuidade das normas e (iii) à não-retroatividade das leis, que não deverão produzir efeitos retrospectivos para colher direitos subjetivos constituídos. Já do ponto de vista subjetivo, a segurança jurídica relaciona-se à proteção da confiança em relação aos atos do Poder Público, tendo como corolário a tutela das expectativas legítimas.” ADI 5398 MC-REF/DF, Relator Min. Luís Roberto Barroso.
 
“Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público, em ordem a viabilizar a incidência desses mesmo princípios sobre comportamentos de qualquer dos poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado.” MS 25805, Relator Min. Celso de Mello.
 
Mostra-se, vale acrescentar, tão indispensável ao mundo do direito a fiel observância do princípio da justa expectativa ou da confiança jurídica, que o artigo 23 da festejada e recém editada LINDB (2018), expressamente dispõe que “A decisão  administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.”
 
Embora o dispositivo da LINDB dirija-se às decisões administrativas dos três poderes e às decisões judiciais, certamente o comando legal é orientação de observância obrigatória também para as decisões legislativas. Entender de forma diversa seria ofender o princípio do equilíbrio e harmonia entre os Poderes (CF/88, art. 2º.) e consagrar a ditadura do legislativo: “faça o que eu mando, não o que eu faço”.
 
O trato responsável do tema da Reforma da Previdência, por tudo que se viu, impõe a previsão de regra de transição formulada segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade. O resto é bravata e gatunagem governamental que no mundo civilizado não pode ter acolhida.
 
 
Fonte: Justificando 
   
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