Falta de articulação política que marcava governo se transforma em discussão pública entre Rodrigo Maia, Sergio Moro, Carlos Bolsonaro e o próprio presidente da República
Antes de completar três meses de mandato, Jair Bolsonaro enfrenta uma crise envolvendo o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A falta de articulação política que vinha marcando o governo até aqui acabou se transformando numa discussão pública entre o deputado, o ministro da Justiça, o presidente da República e um de seus filhos.
Os dois principais projetos do governo seguem parados no Congresso. O texto da Proposta de Emenda à Constituição que muda as regras da Previdência, prioridade de Bolsonaro, está na Comissão de Constituição e Justiça, ainda sem ser discutido. O pacote anticrime de Sergio Moro, titular da Justiça, também não anda.
No centro do debate está o discurso de Bolsonaro segundo o qual ele representa um novo jeito de fazer política, longe do toma-lá-dá-cá que marcou governos de antecessores, longe de um establishment contaminado por práticas que levaram o país a uma grave crise política e econômica. É um discurso que ganha eco e sustentação nas redes sociais, meio de comunicação preferencial do presidente.
1. Reforma dos militares acende luz amarela
Na terça-feira (19), o vice-presidente Hamilton Mourão anunciou que o projeto de reforma da Previdência dos militares, prestes a ser apresentado, viria acompanhado de aumentos de salários, algo que reduziria a economia a ser gerada pela mudança nas aposentadorias.
O presidente da Câmara reagiu criticando o aumento para os militares. Para Maia, era necessário deixar claro que ninguém estava “empurrando essa festa mais alguns anos, com o Estado já quebrado”. O deputado do Rio estava sugerindo que, se a reforma da Previdência dos civis exige sacrifícios, a dos miliateres deveriam ir na mesma linha.
A reação negativa de Maia ao projeto apenas antecipou a percepção de boa parte dos deputados. Até o líder do partido de Bolsonaro, Delegado Waldir (PSL-GO), admitiu que o projeto dificultava a aprovação da reforma dos civis. O projeto dos militares foi chamado de “abacaxi”.
“Ou o governo faz as mudanças como queremos ou deixa a Câmara fazer. Nesse caso, ele tem de assumir que deu tratamento diferenciado a uma categoria.”
Delegado Waldir, líder do PSL na Câmara
2. Exigências de Moro elevam a temperatura
Na quarta-feira (20) pela manhã, Sergio Moro disse que seu pacote de leis anticrime, apresentado em 4 de fevereiro, poderia tramitar junto com a reforma da Previdência dos civis, apresentada em 20 de fevereiro.
O ministro da Justiça estava ali reclamando do encaminhamento dado por Maia ao seu projeto. O presidente da Câmara havia criado um grupo de trabalho para analisar o texto, o que na prática congelava sua tramitação por 90 dias.
Mais tarde, quando perguntado se o ministro da Justiça estava se intrometendo no andamento da pauta da Câmara, Maia fez duras críticas ao ex-juiz da Lava Jato e ao projeto dele.
“O funcionário do presidente Bolsonaro? Ele conversa com o presidente Bolsonaro e se o presidente Bolsonaro quiser ele conversa comigo. Eu fiz aquilo que eu acho correto [sobre a proposta de Moro]. O projeto é importante, aliás, ele está copiando o projeto direto do ministro Alexandre de Moraes [do Supremo]. É um copia e cola. Não tem nenhuma novidade, poucas novidades no projeto dele.”
Rodrigo Maia, presidente da Câmara
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, o que irritou Maia foi uma mensagem enviada pelo ministro da Justiça durante a madrugada cobrando celeridade na tramitação do projeto. O presidente da Câmara respondeu pedindo respeito e lembrando que era ele o responsável pela definição da pauta legislativa.
Moro respondeu por nota oficial, redobrando a aposta de enfrentamento. “Talvez alguns entendam que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o povo brasileiro não aguenta mais”, escreveu o ex-juiz da Lava Jato, que entrou para a política oficialmente em janeiro de 2019, ao assumir o posto de ministro da Justiça de Bolsonaro.
3. Filhos de Bolsonaro agravam desentendimento
Carlos Bolsonaro, vereador no Rio com livre acesso ao Palácio do Planalto, publicou quinta-feira (21) pela manhã em suas redes sociais a declaração da nota oficial do ministro da Justiça.
No mesmo dia, o juiz Marcelo Bretas mandou prender, além do ex-presidente Michel Temer, o ex-ministro e ex-governador do Rio Moreira Franco.
Moreira Franco é casado com a mãe da esposa de Rodrigo Maia, o que motivou, além de piadas nas redes sociais de apoiadores de Bolsonaro, uma publicação irônica do próprio Carlos.
“Por que o presidente da Câmara anda tão nervoso?”
Carlos Bolsonaro, vereador, em post no Instagram no dia 21/03
Ainda na quinta-feira (21), Maia ligou para o ministro da Economia, Paulo Guedes, avisando que deixaria a articulação política para a aprovação da reforma da Previdência.
Deputados que acompanharam o telefonema contaram ao jornal O Estado de S. Paulo que Maia disse a Guedes que “o governo não quer ajuda”. “Eu sou a boa política, e não a velha política. Mas se acham que sou a velha, estou fora”, teria afirmado o presidente da Câmara.
4. Bolsonaro faz comparação. Maia rebate
No Chile, o presidente Jair Bolsonaro admitiu problemas com o presidente da Câmara, disse que não deu motivo para que Maia abandonasse as articulações, mas prometeu conversar.
“Você já teve uma namorada? E quando ela quis ir embora, o que você fez para ela voltar? Não conversou? Estou à disposição para conversar com Rodrigo Maia, sem problema nenhum.”
Jair Bolsonaro, presidente da República
Em resposta, Maia voltou a criticar Bolsonaro, pediu que ele “assuma seu papel institucional”, deixe o Twitter de lado e passe a cuidar da reforma da Previdência.
“Eu não preciso almoçar, não preciso de café e não preciso voltar a namorar. Eu preciso que o presidente assuma de forma definitiva o seu papel institucional, que é liderar a votação da reforma da Previdência, chamar partido por partido que quer aprovar a Previdência e mostrar os motivos dessa necessidade.”
Rodrigo Maia, presidente da Câmara
Além do Congresso, o próprio governo
A crise com o Congresso acontece em um momento em que o próprio governo vive também disputas internas. O escritor Olavo de Carvalho e o vice Hamilton Mourão têm se criticado publicamente.
A instabilidade ronda o Ministério da Educação, cujo titular Ricardo Vélez Rodríguez foi indicado pelo escritor, e o Ministério das Relações Exteriores, cujo titular Ernesto Araújo também é indicação de Carvalho.
Na sexta-feira (22), o assessor da Presidência para Assuntos Internacionais, Filipe Martins, aluno de Carvalho, reclamou de “uma flagrante tentativa de isolar a ala anti-establishment do governo”.
Martins pediu “uma coordenação efetiva entre as diferentes alas do governo”. Horas depois, em uma entrevista, Mourão ironizou Carvalho, a quem chamou de “astrólogo da Virgínia”, numa referência a uma das antigas ocupações do escritor e ao estado americano onde ele vive hoje.
Sobre as disputas do governo com o Congresso e os embates internos do próprio governo Bolsonaro, o Nexo entrevistou o cientista político e professor do Insper Carlos Melo.
Como define a situação da relação de Bolsonaro com o Congresso? Há ameaça real contra a agenda do governo?
CARLOS MELO Acho que sim. O governo não tem um articulador. Pela falta de um articulador próprio. O governo não tem lideranças experientes dentro do Congresso e mesmo no Planalto, na Casa Civil [ocupada por Onyx Lorenzoni]. Quem vinha fazendo esse papel era o Maia, mas o governo conseguiu brigar com o Maia. Foi um erro.
Esse governo se articula mal, tem poucos agentes para fazer o que precisa ser feito e ainda briga com os que têm. Tripudia em cima de aliados, como o centrão [grupo de parlamentares de partidos diferentes, sem unidade ideológica, que se une para aumentar o poder de negociação junto ao Executivo].
E o que está em jogo na disputa interna do governo, entre militares e adeptos de Olavo de Carvalho?
CARLOS MELO Há disputa entre militares e olavistas, agricultura e economia, agricultura e olavistas. Várias disputas. Se fosse só essa…
A agricultura é o setor mais pujante da economia nos últimos anos. De um lado, há a visão super desregulamentadora do Ministério da Economia e de outro o discurso antiglobalismo que prejudica a agricultura. O setor fica espremido entre essas duas concepções diferentes.
Tem também a disputa entre a área da Economia e os olavistas. A Economia é globalista, quer comercializar com todo mundo, o alinhamento automático com o único parceiro comercial atrapalha. Os militares têm visão geopolítica diferente dos olavistas.
Os militares também vão ter uma visão de reforma da Previdência. E não tem quem faça essa arbitragem dos conflitos. Era para ser o presidente da República.
O que pensa da estratégia de culpar uma pretensa ‘política tradicional’ pelos problemas do governo no Congresso?
CARLOS MELO É só a política tradicional que resiste à reforma? Militar não resiste à reforma? Corporações não resistem? O governo tem quatro ministros do DEM. O DEM é a nova política? O governo não compôs com o DEM?
O governo tem endurecido nas negociações com o Congresso, mas também tem cedido em outros pontos. Quem está resistindo? Dê nome aos bois. Fica vendendo o discurso de que há uma resistência à nobreza renovadora que veio da eleição. Mas os que resistem são os aliados do governo, a oposição não tem essa força.
A alegação é que a ‘nova política’ ganhou a eleição.
CARLOS MELO Ganhar eleição a Dilma [Rousseff] também ganhou, governar é diferente. Quando o filho do presidente [Flávio Bolsonaro] vai ao Supremo pedir imunidade parlamentar é nova política?
Se quiser falar em nova política, tem que ser consistente. O partido do presidente da República [PSL] está acusado de uma série de candidaturas laranjas. Que medidas o PSL tomou em relação ao ministro [do Turismo] Marcelo Álvaro Antônio [suspeito no caso dos laranjas]?
Se estamos falando de nova política, tem que ter postura, e não só na relação com o Congresso. É o partido, a família do presidente, um agregado de símbolos. Falar das práticas do Congresso sem praticar efetivamente uma nova política é complicado.
Que o governo diga quem são os operadores da resistência. É só se comunicar com a população, mostrar que tem determinação em implantar uma nova política, ser crível e revelar onde está a resistência. Por que o governo não faz isso claramente? Será que isso é uma justificativa real?
Quem o governo atinge quando invoca a ‘nova política’ em suas disputas no Congresso?
CARLOS MELO Jair Bolsonaro teve 57 milhões num universo de 147 milhões. Ele, quando fala da nova política, está falando com um terço, no máximo. Uma parcela só não queria o PT. Com quem o Bolsonaro está dialogando? Com a sociedade brasileira como um todo ou com uma parcela do seu eleitorado?
Por exemplo, as questões de costumes. Quando Damaris Alves [ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos], Ernesto Araújo e outros falam, será que estão se comunicando com a sociedade ou com uma parcela pequena do eleitorado de Bolsonaro? Talvez haja um problema não só de qualidade do que é comunicado, mas também de não saber para quem se está falando.
Fonte: NEXO
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