Há poucos dias, alguém, no governo, disse que havia três projetos de ataque à Previdência pública – e que eles seriam apresentados a Bolsonaro, logo assim que saísse do hospital.
Voltaremos, mais à frente, ao “projeto” de Guedes e Bolsonaro. Pela confusão do que até agora foi divulgado, parece que ele escolheu os três – todos péssimos, com o objetivo de tirar direitos dos trabalhadores, reduzir aposentadorias e adiar, para o dia do Juízo Final, a idade em que o brasileiro poderia se aposentar.
O que foi já divulgado é pior que a fracassada reforma de Temer, aquela que foi repudiada em cada praça, esquina, casa, fábrica, bar ou café deste país.
Obviamente, o fato do povo ser contra significa pouco ou nada para Guedes e seu protetor, Bolsonaro.
Não foi pela pregação – muito menos pela prática – da democracia que esses elementos ficaram conhecidos.
Porém, numa democracia, não se pode impor ao povo aquilo que ele não quer, aquilo que ele é contra, aquilo que é contra os seus interesses, sob pena de sérias consequências, inclusive eleitorais: dos 23 deputados que aprovaram a “reforma da Previdência” de Temer na Comissão Especial da Câmara, 18 não se reelegeram, a começar pelos notórios Darcísio Perondi (MDB-RS), José Carlos Aleluia (DEM-BA), Cristiane Brasil (PTB-RJ), Pauderney Avelino (DEM-AM) e Júlio Lopes (PP-RJ), que eram deputados quase desde que Noé saiu da Arca.
O povo leva essas coisas em conta, ao contrário do que pensam – ou não pensam – alguns.
Aliás, mesmo em uma ditadura, impor ao povo o que ele não quer, tem consequências fatais – e quem viveu o último período da ditadura de 1964, aquele que vai de 1979 a 1985, sabe disso.
Mas o que é que o povo não quer?
O povo não quer morrer de fome, não quer ser destituído de seus direitos, não quer trabalhar em condições desgraçadas até o dia da morte, sem aposentadoria – ou com uma aposentadoria famélica, miserável.
Então, a questão é: existe alguma necessidade de uma “reforma” que, constatam os auditores da própria Receita Federal sobre o que se conhece daquela de Bolsonaro, “ao alterar a base de cálculo dos benefícios, reduz significativamente o valor das aposentadorias”, e, se aprovada, exigiria “40 anos de contribuição para todos os trabalhadores do Regime Geral da Previdência Social – RGPS, caso queiram se aposentar com o benefício integral”? (v. Frente Parlamentar e Anfip: “A Previdência é Nossa!”).
SANGRIA
Comecemos pelas desonerações da Previdência e Seguridade Social para 2019:
As empresas, portanto, por conta das desonerações, deixarão de pagar à Previdência, em 2019, 156 bilhões, 780 milhões, 646 mil e 808 reais.
Vejamos quanto a Previdência perdeu, nos últimos nove anos, com as desonerações (para 2019, usamos a estimativa da Receita Federal sobre o Orçamento do ano):
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2011: R$ 66,178 bilhões;
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2012: R$ 77,006 bilhões;
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2013: R$ 119,452 bilhões;
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2014: R$ 139,566 bilhões;
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2015: R$ 148,948 bilhões;
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2016: R$ 137,884 bilhões;
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2017: R$ 141,177 bilhões;
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2018: R$ 150,415 bilhões;
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2019: R$ 156,781 bilhões;
TOTAL: R$ 1 trilhão, 137 bilhões e 407 milhões (fonte: SRF e ANFIP).
E o farsante que Bolsonaro colocou na Fazenda diz que seu plano de matar idosos é para “economizar” um trilhão em 10 anos!
Bastaria acabar com esse calote antissocial à Previdência para obter um resultado melhor do que isso.
Mas, evidentemente, são duas coisas diferentes – e opostas: Guedes não pretende tirar um trilhão da Previdência para melhorar a Previdência. Não pretende devolver esse trilhão, mas passá-lo ao setor financeiro, esse cartel de quadrilhas – internas, e, sobretudo, estrangeiras.
Guedes, inclusive, quer aumentar as desonerações e isenções fiscais: em Davos, no último dia 23 de janeiro, prometeu rebaixar em 55% – “de 34% para 15%” – os tributos pagos pelas empresas e compensar a queda na arrecadação com o aumento de impostos sobre “outros” setores (“baixa um e sobe o outro para ficar todo mundo mais ou menos igual”, disse o sofisticado Guedes).
Ele não estava falando para quaisquer empresas: estava falando para monopólios financeiros, pois é isso o que existe no encontro de Davos.
Não é para a quitanda do seu Joaquim – ou para a fábrica de autopeças do seu Paulo – que ele quer diminuir impostos.
O leitor, portanto, pode adivinhar quais são os “outros” setores que compensariam uma menor carga tributária para os monopólios financeiros multinacionais (uma carga menor, disse ele, que a dos EUA, mesmo depois de Reagan, Bush e Trump).
Para isso, ele quer desviar dinheiro da Previdência – mais ainda do que hoje é desviado – impedindo trabalhadores de se aposentar e reduzindo o valor dos proventos reais daqueles que vierem a se aposentar ou já estiverem aposentados.
Mas não são apenas as desonerações que atingem a Previdência.
ISENÇÕES
Antes de passarmos para a dívida que as empresas – sobretudo algumas empresas – têm com a Previdência, apenas um exemplo do que significam as desonerações (os dados são apenas para 2019, e a fonte é o Demonstrativo de Gastos Tributários da Receita Federal):
Por conta das desonerações, o agronegócio, apesar de seus ganhos extraordinários com o cultivo e exportação de soja, deixará de pagar R$ 30 bilhões, 233 milhões, 333 mil e 446 reais, em 2019, à Previdência, apesar de sua contribuição à arrecadação já ser mínima.
Esse é apenas um exemplo da sangria a que a Previdência é submetida – depois, pretendemos publicar uma matéria mais circunstanciada sobre o assunto.
Mas o problema, no entanto, para alguns anormais – não encontramos melhor palavra – é o trabalhador que, supostamente, se aposenta cedo demais, depois de décadas de trabalho, e ainda quer ganhar, pelo menos, um salário mínimo depois de aposentado.
DEVEDORES
Não deixa de ser espantoso – apesar de tudo o que vimos, em matéria de pouca vergonha, nos últimos anos – que empresas beneficiadas escandalosamente pelas desonerações, nem por isso paguem à Previdência.
Os corifeus da “reforma” costumam dizer que a dívida das empresas e outras pessoas jurídicas com a Previdência não tem importância, porque seria “irrecebível” – seriam dívidas de empresas falidas, e sempre é citada a Varig como exemplo.
Mas não é verdade.
Por exemplo, a Embaixada dos Estados Unidos está entre os mil maiores devedores da Previdência (deve R$ 65 milhões, 175 mil, 235 reais e 48 centavos, valor corrigido pelos preços de janeiro de 2019).
No entanto, apesar dos esforços de Trump, a Embaixada dos EUA não parece uma empresa falida.
Se não pagou, é porque não quis pagar.
A JBS deve à Previdência R$ 2 bilhões, 404 milhões, 592 mil, 388 reais e 69 centavos – e, apesar de todas as vicissitudes, não é uma empresa falida.
Muito menos era uma empresa falida quando contraiu essa dívida, na época em que recebeu, em troca de propina, R$ 5,64 bilhões do BNDES, inteiramente de graça, sob a forma de compra de ações (v. JBS: Temer, Lula, Meirelles, propinas e dinheiro do BNDES).
Se a JBS não pagou à Previdência, foi porque não quis pagar – e a polícia não foi chamada a cobrar, pois isso é caso de polícia.
O Bradesco, que deve R$ 574 milhões, 999 mil, 434 reais e 56 centavos à Previdência, também não é uma empresa falida.
Aliás, mesmo a dívida das empresas falidas não é irrecuperável – é para isso que existe a “massa falida”: para ressarcir os credores.
É verdade que a nova lei de falências, proposta e aprovada no governo Lula, concede prioridade, na massa falida das empresas, ao “credor financeiro” – isto é, aos bancos -, inclusive acima das dívidas trabalhistas.
Mas não é à toa que a massa falida da Varig, por exemplo, não saiu da “dívida ativa” da Previdência – pela simples razão de que essa massa falida existe.
Portanto, a lenda do “irrecebível” somente esconde a falta de vergonha: quando o calote parte dos ricos, é perdoável. Quando são os pobres, somente falta apelar ao baraço e ao cutelo para punir o cidadão por não ter dinheiro para pagar a sua dívida.
Assim, segundo essa gente, somente os pobres é que devem pagar à Previdência – e, de resto, somente eles é que devem pagar todos os tributos.
Nesse caso, o da “reforma”, se ela passasse, somente os pobres deveriam pagar, para receber nada em troca.
Pois toda a lógica (quer dizer, toda a falta de lógica, de racionalidade, de humanidade) da “reforma” de Guedes e Bolsonaro, está em que o trabalhador deve morrer antes de se aposentar.
É verdade que a questão é tão nevrálgica, tão sensível – em suma, o repúdio é tão grande – que os seus promotores gastam um tempo imenso discutindo “regras de transição” que expressam apenas o medo de que o caldo entorne.
E, se continuarem nesse caminho, não há dúvida: vai entornar.
Mas, voltemos aos grandes devedores da Previdência.
Vejamos esta lista, de 30 deles:
É possível dizer que alguma dessas empresas, beneficiadas por tudo o que é espécie de desoneração ou renúncia fiscal, não tenha dinheiro para pagar a Previdência?
Pois somente essas 30 empresas, incluindo JBS, Bradesco, Vale, etc., devem à Previdência, em valores corrigidos até janeiro deste ano, R$ 8 bilhões, 819 milhões, 240 mil, 433 reais e 72 centavos (a tabela acima está em reais de maio de 2017, mas a diferença é pouca).
Vejamos outro grupo de devedores, as faculdades particulares ou suas sociedades mantenedoras, amplamente beneficiadas pelos Fies, Pro-Uni e outros instrumentos de passagem de dinheiro público para proprietários de instituições de ensino (ou, muitas vezes, supostamente de ensino).
O conjunto das isenções fiscais federais (isto é, sem contar as isenções estaduais e municipais) para o ensino privado, atingirá R$ 15 bilhões, 992 milhões, 842 mil e 950 reais em 2019 (cf. SRF, DGT 2019).
Mas isso não faz com que escolas e faculdades particulares paguem à Previdência:
PÚBLICO
Vejamos agora outra espécie de devedor, os entes públicos:
Aqui, não entraremos na razão desses débitos à Previdência de Estados, municípios e outros entes públicos (nem todos estão listados acima). Apenas sublinharemos que a terra arrasada a que foi submetida a máquina pública desde 1990, tem grande responsabilidade nessa situação.
Mas não colocamos aqui essa tabela, senão pela seguinte razão: é possível dizer que dívidas de entes públicos para com a Previdência sejam “irrecebíveis”?
É claro que não.
INFINITO
A dívida dos mil maiores devedores da Previdência soma, em valores corrigidos, R$ 136 bilhões, 627 milhões, 412 mil, 866 reais e 8 centavos.
Reparemos que essa é a lista dos 1.000 maiores devedores, pois “a soma dos passivos das empresas junto à previdência remonta cifras da ordem de R$ 450 bilhões” (cf. CPI da Previdência, Relatório Final, outubro/2017, p. 32).
Alguns dos gênios do “irrecebível”, que citamos acima, formularam a edificante teoria de que, mesmo se essa dívida fosse “recebível”, de nada adiantaria, pois o seu “rombo” da Previdência (o que eles fabricaram) é anual, enquanto a dívida é uma só, logo, seu pagamento serviria apenas para um ano, na hipótese de que todos pagassem de uma só vez.
Albert Einstein (o físico, não o hospital favorito de Bolsonaro) disse uma vez que “duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, não tenho certeza absoluta”.
É verdade que a estupidez é sempre mais desumana que humana.
Mesmo se fosse verdade o que dizem os corifeus da “reforma”, a dívida com a Previdência tem que ser cobrada.
Não cobrá-la é a mesma coisa que sancionar o roubo como ato moral – contanto que o ladrão seja rico.
É mais ou menos essa a moral dos corifeus – e dos filisteus.
Por qual motivo a coletividade deveria arcar com o calote de elementos antissociais, em flagrante desrespeito às leis?
Além disso, é claro que se as grandes empresas não pagam à Previdência, porque as outras empresas se sentiriam obrigadas a pagar?
Seria, inclusive, uma injustiça com aqueles que, apesar disso, pagam.
A dívida com a Previdência torna-se, portanto, um entrave ao próprio aumento da arrecadação, na medida em que é um estímulo à sonegação.
E, convenhamos: R$ 450 bilhões (ou R$ 136,6 bilhões) não é pouco dinheiro para os trabalhadores da ativa e os aposentados que constituem a base da Previdência.
De resto, não pagar à Previdência – e outros tributos – é isentar-se de responsabilidade em relação à sociedade. A ideia de que pagar impostos é, por si só, algo injusto, somente pode caber na mente de egoístas, sem espírito público, coletivo, social. Portanto, muito inadequados para viver em sociedade.
Certamente, se existe algum tributo injusto, vamos discutir e lutar para aboli-lo.
Mas estamos falando daqueles que acham qualquer tributo injusto, quando se trata deles pagarem. Quando são os outros a pagar, até que acham muito bom o imposto…
DESVIO
Ainda restaria, aqui, na sangria da receita da Previdência, a Desvinculação das Receitas da União (DRU).
Como já nos estendemos sobre essa questão em outro artigo (v. A fabricação do “déficit” da Previdência), aqui frisamos apenas (e não é pouco) que, de 2005 a 2017, através da DRU, foram desviados R$ 1,02 trilhão da Previdência, em valores corrigidos até dezembro de 2017 (cf. ANFIP, Análise da Seguridade Social 2017, Brasília, 2018, p. 73).
PROJETOS
Uma nota sobre o projeto de “reforma” que, segundo o Planalto, Bolsonaro irá anunciar na quarta-feira (20/02), pela TV.
Como não persistem dúvidas sobre a incapacidade de Bolsonaro de distinguir, em matéria governamental, uma avestruz de um elefante, esperava-se que ele usasse algum método original para escolher – por exemplo, os palitinhos – entre os três projetos que Guedes teria lhe apresentado.
Porém, nem isso. Segundo fontes planaltinas, sua profunda análise dos projetos durou menos que três minutos, talvez menos que um: escolheu, quanto à idade mínima, 65 anos para os homens e 62 anos para as mulheres.
Talvez Bolsonaro tenha levado tão pouco tempo para “analisar” os três projetos, porque não havia mesmo diferença, exceto cosmética, entre eles.
O resto é confusão, pois, segundo um dos panfletos anti-previdência da mídia, o projeto também mudaria o cálculo das aposentadorias, mas não se sabe em quê.
Naturalmente, é bobagem queixar-se de que Bolsonaro nem leu os projetos de Guedes. Além da leitura não ser a sua especialidade, de que adiantaria ele ler?
Se existe algo de que não morreremos, é do susto causado por alguma proposta progressista, ou útil ao país, por parte de Bolsonaro.
Fonte: Hora do Povo
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