Agravada durante a ditadura militar (1964-1985) e pouco combatida durante os governos progressistas, a concentração de renda entre os brasileiros mais ricos não esteve nem perto dos padrões internacionais mais razoáveis ao longo do século 20 e até os primeiros anos deste século.
Na última semana, ele foi anunciado como vencedor na categoria Livro do Ano do Prêmio Jabuti, com a obra Uma História da Desigualdade: a Concentração de Renda entre os Ricos no Brasil – 1926-2013. Publicado pela editora Hucitec, o livro foi feito a partir de uma tese de doutorado, defendida em 2016 na Universidade de Brasília (UnB), e também venceu o Jabuti na categoria Humanidades.
O estudo foi feito a partir de dados de 87 anos do Imposto de Renda, a maior série do tipo já publicada, e mostra que o 1% mais rico dos brasileiros manteve entre 25% a 30% da renda total desde então. Para efeito de comparação, na Alemanha essa concentração é de cerca de 10%; no Chile, um pouco acima de 20%.
A seguir, trechos de sua entrevista ao Estadão:
Quando o Brasil, visto do topo, foi menos desigual?
Essa foi a coisa mais surpreendente do estudo. Foi entre 1945 e o início dos anos 1960, quando o País estava saindo do Estado Novo. É uma época sobre a qual a gente não tinha muita informação a respeito. Nessa época, o 1% detinha 17% da renda total. Com o golpe militar, essa tendência tem uma reversão bastante surpreendente. O que mais surpreende é a persistência da concentração de renda no topo.
E, ainda assim, é uma concentração de renda muito alta, certo?
Sim. O padrão do mundo, pensando na renda monetária, é que o 1% detenha entre 5% e 15% da renda. Algo em torno de 10% seria razoável, próximo à realidade da Alemanha ou da França.
A política econômica da ditadura militar foi concentradora de renda?
Com certeza. O período militar foi um período de concentração, especialmente nos primeiros e nos últimos anos. O legado deixado pelos militares foi de crise, inflação e desigualdade alta. Logo nos primeiros anos de ditadura, economistas que estudavam o tema identificaram os brutais efeitos do ajuste econômico na distribuição de renda. No governo Castello Branco (1964-1967) foi lançado o Plano de Aceleração Econômica do Governo (Paeg), com várias medidas de arrocho. O salário mínimo caiu em termos reais e isso aumentou as margens de lucro das empresas. Também houve uma série de medidas posteriores, como o aperto monetário e uma política de concentração bancária, que ajudou a criar um sistema oligopolizado.
Mesmo durante o "milagre econômico", até o início dos anos 70?
Sim. O (presidente Emílio Garrastazu) Médici disse que a economia ia bem, mas o povo ia mal. O bolo cresceu, mas nunca chegou a ser dividido. Crescimento e desigualdade não andam necessariamente juntos. Depois, o governo de (Ernesto) Geisel reconheceu que a desigualdade era um problema forte.
Os governos mais à esquerda a partir de 2003 conseguiram reduzir a pobreza e a desigualdade?
O Brasil sempre mostrou uma dificuldade muito grande em reduzir a concentração pelo topo. Entre 2000 e 2015, a pobreza diminuiu, todo mundo melhorou de vida em termos absolutos, mas a queda da desigualdade foi bem menor do que a gente imaginava. Embora os mais pobres tenham melhorado de vida, os mais ricos também se protegeram. Alguma distribuição houve, mas ela se deu pelas classes intermediárias.
O Brasil se acostumou a ser desigual?
Sim, o Brasil se acostumou a ser desigual. Nenhum país é tão desigual por tanto tempo sem ter se acostumado com isso. E nenhuma mudança vai acontecer sem resistência. A diferença de renda entre grupos sociais acaba se refletindo na capacidade de influenciar na pauta política e gera uma dinâmica muito problemática. Mas é importante debater saídas. Não se trata de nivelar arbitrariamente para que todo mundo seja exatamente igual, a discussão é como aproximar o Brasil de padrões internacionais, desses países que os brasileiros admiram.
A desigualdade é um tema que tem aparecido mais nas discussões recentemente?
A desigualdade tem ganhado força, mas é um assunto que vai e vem, em algumas ondas. O Brasil teve um debate público muito forte no início dos anos 70, depois, nos anos 2000, se voltou a falar e agora parece estar ganhando as atenções mais uma vez. Pessoas excelentes, como (o ex-presidente do Banco Central) Armínio Fraga, têm falado disso muito bem. É natural, saindo de uma recessão, as pessoas começam a discutir que País a gente quer ser. A concentração de renda entre os mais ricos ganha força pela crise estrutural do Estado, porque, no fundo, discutir a concentração de renda é discutir como financiar os serviços públicos. A reforma tributária acaba sendo um exemplo catalizador desse debate. Mesmo na eleição passada, vários candidatos falaram sobre cobrar mais impostos de mais ricos.
Uma saída para resolver o problema seria cobrar mais impostos dos ricos?
A política mais intuitiva e mais fácil do ponto de vista técnico (que não resolveria tudo, mas poderia ajudar) é olhar para a estrutura da arrecadação de impostos. Não estou discutindo a carga tributária, mas a necessidade de deixar de arrecadar com bens e serviços e mais na renda e no patrimônio. O primeiro passo seria mexer no Imposto de Renda, voltar a tributar lucros e dividendos, aumentando a base de cálculo e diminuindo as deduções. O Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) arrecada muito menos do que poderia, de forma progressiva. E fazer isso enquanto se dá um alívio na tributação indireta, seria ótimo. Não seria nenhuma revolução, mas nos empurraria para um lugar menos desigual.
A redução da desigualdade é uma meta ainda distante?
Não conheço casos documentados de redução da desigualdade em outros países, nessa magnitude, sem que tivessem passado por tragédias ou grandes crises. Na Europa, isso ocorreu após a Segunda Guerra Mundial. Mas isso não quer dizer que seja impossível, o primeiro mundo é uma invenção recente, então, esse salto também é possível para o Brasil, ainda que não pareça, neste momento, muito provável. O desafio é inventar um meio pacífico para que isso ocorra.
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