A Lava-Jato mostra que os tribunais de contas, expostos a interferências políticas, participam de um jogo de cena. Nele. o Legislativo finge que fiscaliza e o Executivo finge que é fiscalizado.
Os tribunais de contas funcionam de acordo com o interesse de quem patrocinou seus conselheiros.
O esdrúxulo cotidiano que o Brasil tem vivido não é fenômeno recente. “Pense num absurdo. Na Bahia, tem precedente”, dizia o político baiano Otávio Mangabeira durante o Estado Novo (1937-1945). Com essa frase singela, Mangabeira referia-se à corrupção que se alastrava pelo Estado, que, bem sabia ele, não se restringia à terra de Jorge Amado.
A naturalidade da prisão temporária de cinco membros do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro (TCE- RJ) revela que nada mais surpreende. No início de abril, eles foram levados a um complexo penitenciário em Bangu, acusados de receber propina para ignorar irregularidades em contratos e obras governamentais. Na mesma linha, as recentes revelações de executivos da Odebrecht apontam para o envolvimento do ex-governador José Serra e de representantes do Tribunal de Contas de São Paulo (TCE-SP) em contratos superfaturados do metrô paulistano.
O achaque às empreiteiras e a defesa de interesses localizados – com complacência de representantes do Leria fiscalizar – parecem compor a fita de terror banal que o país tem visto: escândalos de ontem são superados por escândalos de hoje.
Casos assim não se restringem ao TCE fluminense nem ao paulista. Em maior ou menor grau, conluios e distorções desse tipo são observados em outros estados, em municípios e no plano federal. É uma questão sistêmica, nacional. Os tribunais de contas são organismos de assessoramento ao Poder Legislativo – e não são “tribunais”. Normalmente, contam com um corpo técnico bem qualificado e capaz de investigar com seriedade os atos do Executivo. Todavia, suas conclusões são postas para a decisão de conselheiros, que foram indicados politicamente após uma extensa barganha entre o Legislativo e o Executivo.
O fisiologismo, assim, toma o ambiente propício à extorsão e aos balcões de negócios, que comprometem as relações do Estado com seus prestadores de serviço e fornecedores. Faz-se um jogo de cena. O Legislativo finge que fiscaliza o Executivo, que finge ser controlado. Politicamente orientados, os tribunais de contas funcionam segundo o interesse de quem patrocinou conselheiros. O zelo pela coisa pública e o interesse coletivo desaparecem. A república sucumbe ao interesse pessoal.
Reformar essa estrutura é fundamental. A experiência internacional pode trazer inspiração. A Cour des Comptes francesa tem uma estrutura independente do Legislativo e do Executivo. Possui coordenação central e abrange as esferas locais, regionais e nacional. Dessa maneira, é capaz de controlar as contas públicas, apontar irregularidades e auxiliar os demais órgãos da administração de modo uniforme e a salvo de interferências políticas.
EUA e Inglaterra guardam similaridade com o Brasil. Nesses países, os principais organismos de controle são órgãos de assessoramento do Parlamento. Contudo, eles estão muito mais blindados politicamente e têm mecanismos de freios e contrapesos, que se autofiscalizam e asseguram transparência. O tribunal de contas britânico, o National Audit Office, é supervisionado por um comitê parlamentar normalmente presidido por um representante da oposição com reputação técnica. Seu correspondente americano, o Governrnent Accountability Office, conta com uma comissão suprapartidária que sugere nomes para o cargo de controlador-geral, além de estar sujeito a processos de auditoria externa para assegurar que suas recomendações sigam os padrões desejados.
É claro que não cabe a simples cópia de modelos. A estrutura política do Brasil – partidos, sistema eleitoral e cultura cívica – conserva enorme distância dos casos acima. Ainda assim, é possível conciliá-los com o pouco do que o país já possui. Casos de sucesso não podem ser descartados. A Controladoria-Geral da União (CGU) e a Controladoria-Geral do Município de São Paulo (CGM), politicamente protegidas de interesses partidários e de governos, foram responsáveis por importantes avanços.
O ataque à pequena corrupção detectada em auditorias no nível micro permite desenrolar o novelo de casos mais graves e gerais. Auditorias servem de base para investigações policiais que resultam em ações do Ministério Público, levadas à Justiça, à qual cabe ser implacável contra práticas que a sociedade não mais tolera.
O importante é estabelecer interfaces sincronizadas de modo a estimular o sistema de pesos e contrapesos e o necessário processo colaborativo entre as agências de controle. Informações devem ser compartilhadas e a luta contra a corrupção tem de ser posta em primeiro plano.
É claro que o corpo diretivo desses órgãos precisa ser tecnicamente capaz, eliminando-se a indicação política ou restringindo-a ao mínimo suportável. A nomeação para os principais postos nos tribunais de contas hão pode ser tratada como um prêmio de consolação para candidatos derrotados em eleições. Também não pode ser utilizada como indicação estratégica para garantir interesses de grupos políticos ou de agentes privados.
Pressões para a obtenção de maior profissionalismo e autonomia na direção desses órgãos públicos precisam ser levadas adiante. Para isso, pode-se considerar a hipótese de escolha dos dirigentes desses órgãos por voto direto de seus pares, em pleitos de meio de mandato, com duração mais longa que os termos dos poderes Executivo e Legislativo, de modo que mantenham autonomia em relação a eles.
O tema precisa ser assimilado como política pública prioritária. Mais política e menos politicagem. Mais fiscalização e menos pactos de mediocridade. Mais transparência, mais pesos e contrapesos. Naturalmente, mais discussão. O debate não deve se encerrar aqui.
*Administrador. Em parceria com Carlos Melo, Cientista Politico. Matéria na Revista Veja, Edição nº 2527 de 26/04/2017.
Fonte.
Comente