Todo ano, proliferam em julho e agosto fotos e filmes dos grandes incêndios que provocam o desmatamento na Amazônia. É um fato tão previsível quanto o Carnaval ou os fogos de artifício sobre Copacabana no Réveillon
Vejo que o agronegócio brasileiro está preocupadíssimo com sua imagem no exterior e, temendo boicotes ou outras sanções internacionais, está analisando várias novas estratégias de relações públicas para melhorar a situação. Tenho uma sugestão radical: já que está cada vez mais difícil manter a rede de mentiras que sustenta a indústria, por que não adotar políticas sensatas e cumprir a lei?
Todo ano, proliferam em julho e agosto fotos e filmes dos grandes incêndios que provocam o desmatamento na Amazônia. Proliferam também as lamentações no mundo inteiro sobre a devastação e as promessas de uma fiscalização mais rigorosa. É um fato tão previsível quanto o Carnaval ou os fogos de artifício sobre Copacabana no Réveillon. Mesmo assim, o problema continua aumentando: dados oficiais indicam que a área devastada em agosto do ano passado foi 222% maior do que a desmatada no mesmo mês de 2018. Em julho, a cifra foi pior ainda: 278%.
Quero deixar claro que não estou isentando os compradores estrangeiros de produtos brasileiros desta crítica: do campo até a mesa do consumidor, existem múltiplos intermediários que também lucram com um sistema corrupto.
“É PARECIDO COM O TRÁFICO DE DROGAS, ONDE EXISTE OFERTA, MAS DEMANDA TAMBÉM”
Uma importante parcela da culpa cai sobre os ombros dos quatro gigantes do agronegócio internacional e dos comerciantes de madeira e ouro.
No passado, sempre foi fácil negar conhecimento das ilegalidades. Quando, há 20 anos, eu fazia reportagens na Amazônia sobre a vinculação entre o desmatamento e a produção ilegal e ligava para importadores de soja, madeira ou carnes nos Estados Unidos ou na Europa, a resposta deles era sempre a mesma: estamos atuando de boa-fé, cumprimos todas as leis brasileiras, desconhecemos qualquer abuso, e seria ingerência na soberania dos brasileiros exigir que eles consertem eventuais fraquezas no sistema.
Só que esses executivos, sentados em escritórios cômodos em Nova York ou Miami, Milão ou Amsterdã, longe do calor e da violência do campo brasileiro, entendiam, como eu, que tudo era encenação. Os certificados “verdes” do Ibama ou do Incra que eles aceitavam como legítimos, por exemplo, eram muitas vezes toscamente falsificados. Todo mundo sabia disso: em qualquer município amazônico de médio porte operavam abertamente falsificadores, que forjavam não apenas os certificados mas também escrituras.
Essa situação prevaleceu até mais ou menos 2010. Mas, na última década, avanços na tecnologia têm enterrado de uma vez por todas esse fingimento de “não sei de nada”. Os dados dos satélites do Inpe são fundamentais nesse processo, mas para mim uma das ferramentas mais poderosas de accountability corporativo foi desenvolvida pela ONG inglesa Trase (“rastrear”), que se autodenomina como “uma nova plataforma de acesso aberto que proporciona maior transparência para cadeias de produção” de commodities.
Numa colaboração com duas ONGs brasileiras — o Instituto Centro de Vida, em Cuiabá, e a Imaflora, em Piracicaba — a Trase acaba de publicar um rico banco de dados que, por referência cruzada, permite identificar as infrações em nível de município. Os dados não citam fazendeiros ou exportadores específicos, mas por meio do cruzamento de dados é fácil deduzir quem é quem.
Em junho o consórcio publicou dois relatórios reveladores sobre o agronegócio brasileiro, disponíveis em português e inglês no site da Trase. O primeiro trata da soja em Mato Grosso e mostra que “95% do desmatamento em fazendas de soja entre 2012 e 2017 ocorreu sem autorização dos órgãos ambientais, sendo, portanto, ilegal”. Mais interessante ainda, “80% do desmatamento ilegal em fazendas de soja ocorreu em 400 imóveis, que representam apenas 2% do número total de fazendas de soja no estado”.
Ou seja, quase 98% das fazendas não violam a lei, mas acabam metidas no mesmo saco com os infratores. O segundo relatório, sobre exportações de carne bovina, chega a uma conclusão quase idêntica: os abusos “estão altamente concentrados em um pequeno número de empresas e regiões”, com apenas 25 municípios representando “metade dos riscos associados a emissões de CO2 causadas pelo desmatamento”.
Nós temos uma expressão em inglês que descreve perfeitamente a política histórica do agronegócio e seus aliados: “tentar passar batom num porco”. Ou seja, empenhar-se em enfeitar algo tão feio que simplesmente não dá para embelezar. Num momento em que um acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul talvez esteja em perigo por causa da devastação ambiental na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal, a Trase oferece ao agronegócio um instrumento de autopoliciamento. Será que eles vão aproveitar?
Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”