LinkedIn: Lazaro D. | Auditor Federal de Controle Externo no Tribunal de Contas da União, Ex Auditor de Controle Externo do TCE/PR
De tempos em tempos, reaparece um texto “moderado” e “preocupado” com o tal domínio ideológico da esquerda nas instituições públicas. A melodia é sempre suave: pluralismo, liberdade, equilíbrio… Mas o refrão é velho conhecido — o Estado brasileiro estaria sob o jugo de uma única visão de mundo, o que, dizem, seria um risco à democracia.
O curioso é como esse argumento, já tão gasto de tanto circular por colunas, discursos e editoriais, ainda consegue pousar com jeito de bom senso. Quem, afinal, seria contra a diversidade de ideias? Contra a saudável alternância de poder? É aí que mora a esperteza: travestir de virtude o incômodo com qualquer projeto progressista que tenha ousado ir além da retórica e alcançar alguma estrutura de poder.
A base do argumento, convenhamos, é frágil. Parte da premissa de que existiria uma “neutralidade técnica” a ser resgatada — como se as instituições públicas tivessem, um dia, sido ilhas desabitadas de ideologia. Essa ilusão, tão cara ao liberalismo clássico, trata política como um ruído indesejável. Só que o tal “técnico” quase sempre fala em nome de uma ideologia disfarçada: a do mercado, da elite, do status quo.
Se universidades, órgãos ambientais ou tribunais passaram a contar com servidores mais críticos ao neoliberalismo, a resposta não está em um suposto “aparelhamento”. Está, isso sim, na história recente de desmonte e captura dessas mesmas instituições. A reação não é partidária — é cívica. É o eco de quem cansou de ver políticas públicas tratadas como planilhas de Excel.
Outro bordão habitual é o da “alternância”. Um clássico. Mas cabe perguntar: quando um determinado campo político permanece por mais tempo no poder, será por manipulação ou por mérito? Por que os liberais educados e os conservadores republicanos não conseguiram oferecer algo que comovesse, que mobilizasse, que inspirasse votos? Fica parecendo que alternância, para alguns, só é boa quando significa a volta ao poder dos de sempre.
Mas o trecho mais revelador dessas críticas costuma ser aquele que aponta a “homogeneidade ideológica” do funcionalismo público. A acusação é sutil — e venenosa. Como se fosse um problema grave o fato de professores, auditores, técnicos ambientais ou juízes estarem atentos às desigualdades sociais, à crise climática ou à história que nunca foi bem contada. O subtexto é claro: o Estado precisa ser “recolonizado” por vozes mais simpáticas ao conservadorismo, ao mercado, à velha ordem.
No fundo, esse discurso que se diz neutro — “nem de esquerda nem de direita” — é político até a medula. Mas político no pior sentido: aquele que usa a capa da moderação para conter a transformação, para desautorizar a participação popular, para preservar os donos do poder. Quando falam em concursos “despolitizados” ou “limites entre Estado e ideologia”, o que querem, na prática, é impedir que o povo exerça o mínimo de influência sobre as estruturas que o governam.
Não se trata aqui de defender um Estado sectário, fechado em dogmas. Longe disso. Mas é preciso ter lucidez: quando a crítica à “hegemonia” vem de quem nunca aceitou dividir o poder com o povo, o que se propõe não é o pluralismo — é a restauração. Uma volta, elegante e moderada, ao tempo em que poucos mandavam e muitos apenas obedeciam.
E isso, sim, é que deveria nos preocupar.