Tribunais de Contas podem julgar contas de prefeitos que ordenam despesas?

Tribunais de Contas podem julgar contas de prefeitos que ordenam despesas?

Ouça essa matéria:

Matéria original: Jota

Da leitura do art. 71, I da Constituição de 1988 extrai-se a lição de que nenhum dos órgãos de controle que integra o Sistema Tribunal de Contas julga as contas prestadas anualmente pelo chefe do Poder Executivo.

O mandamento constitucional exige, que, ao apreciar as contas de governo do chefe do Poder Executivo seja exarado um parecer prévio e não uma deliberação de mérito por parte dos Tribunais de Contas. O julgamento de tais contas cabe, ao fim e ao cabo, ao Legislativo.

Assim, “as contas públicas dos chefes do Executivo devem sofrer o julgamento – final e definitivo – da instituição parlamentar, cuja atuação, no plano do controle externo da legalidade e regularidade da atividade financeira do presidente da República, dos governadores e dos prefeitos municipais, é desempenhada com a intervenção ad coadjuvandum do tribunal de contas[1]”.

Por outro lado, o art. 71, II da Constituição estabelece as hipóteses em que as Cortes de Contas julgarão “as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta” e “as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público”.

Tendo por foco os “administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos”, deduz-se que os Tribunais de Contas julgam (e, portanto, são capazes de aplicar multas e determinar a devolução de valores ao erário) as contas de gestão dos ordenadores de despesas.

Quando o chefe do Executivo (notadamente prefeitos) acumula funções e pratica atos típicos de ordenadores de despesas, quem julga suas contas de gestão? O Tribunal de Contas ou o Poder Legislativo?

Bom, há quatro temas do Supremo Tribunal Federal tratando do assunto.

No Tema 835 da repercussão geral, que tinha por objetivo definir o órgão competente para julgar as contas de chefe do Poder Executivo que age na qualidade de ordenador de despesas, o STF adotou (em decisão que transitou em julgado em 08/10/2019) a seguinte tese no RE 848.826-CE: “Para fins do art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores”.

Já no RE 729.744-MG, se discutiu, à luz do art. 31 da Constituição Federal, se a competência da Câmara Municipal para o julgamento das contas do chefe do Poder Executivo municipal era exclusiva, e se seria, por conseguinte, meramente opinativo o parecer prévio do Tribunal de Contas respectivo, que não poderia substituir o pronunciamento da Casa Legislativa.

Quando do julgamento do Tema 157 da repercussão geral, foi fixada tese no sentido de que “O parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso de prazo”.

A terceira vez em que o Supremo tratou da questão em sede de repercussão geral foi quando, ao julgar o RE 1.459.224-SP firmou no Tema 1304 a tese de que “É correta a interpretação conforme à Constituição no sentido de que o disposto no §4º-A do art. 1º da LC 64/90 aplica-se apenas aos casos de julgamento de gestores públicos pelos Tribunais de Contas“.

Por fim, ao fixar o Tema 1287 no ARE 1.436.197-RO, a Suprema Corte entendeu, em acórdão publicado em 01/03/2024, que: “No âmbito de tomada de contas especial, é possível a condenação administrativa de chefes dos Poderes Executivos municipais, estaduais e distrital pelos Tribunais de Contas, quando identificada a responsabilidade pessoal em face de irregularidades no cumprimento de convênios interfederativos de repasses de verbas, sem necessidade de posterior julgamento ou aprovação do ato pelo respectivo Poder Legislativo”.

Diante de tal cenário delineado pelo STF, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu a seguinte decisão em 06/08/2024:

1. Trata-se de novo exame do recurso ordinário julgado pela Segunda Turma desta Corte, à luz da tese fixada no julgamento do RE n. 729.744, submetido ao rito da repercussão geral (Tema 157), em razão do disposto no art. 1.040, inciso II, do CPC. 2. No caso, a Segunda Turma desta Corte confirmou o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, que entendeu legítima decisão condenatória do Tribunal de Contas local, com imposição de débito e multa ao recorrente, em razão de irregularidade na prática de ato de gestão pelo Prefeito do Município, especificamente, a compra superfaturada de um terreno. 3. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 729.744 (Tema 157), concluiu que compete à Câmara Municipal o julgamento das contas anuais do Prefeito. Na ocasião foi firmado o entendimento de que o Tribunal de Contas atua como auxiliar do Poder Legislativo, cabendo-lhe apenas a emissão de parecer técnico opinativo, sem força vinculante. 4. Posteriormente, no julgamento do RE n. 848.826 (Tema 835), a Suprema Corte decidiu que, para fins de aplicação da sanção de inelegibilidade prevista no art. 1.º, inciso I, alínea g, da LC n. 64/1990, alterado pela LC n. 135/2010, a exequibilidade da decisão da Corte de Contas local sobre as contas do Prefeito, tanto as anuais (de governo) como as de gestão, depende de expressa manifestação do Poder Legislativo municipal. 5. Mais recentemente, no julgamento do ARE n. 1.436.197, sob o rito da repercussão geral (Tema 1287), o Supremo Tribunal Federal delimitou que a necessidade de manifestação expressa do Poder Legislativo local sobre a aprovação das contas do Chefe do Executivo municipal restringe-se às prestações de contas anuais, as chamadas contas de governo. No que se refere às contas de gestão, a deliberação da Câmara Municipal é exigida apenas nos casos em que é analisada a inelegibilidade, para fins de registro de candidatura. 6. Nos demais casos de atos de gestão de Prefeito, que não estejam relacionados com análise de inelegibilidade para fins de registro de candidatura (LC n. 64/1990, art. 1º, I, g), ‘permanece intacta – mesmo após o julgamento dos Temas 157 e 835 suprarreferidos – a competência geral dos Tribunais de Contas relativamente ao julgamento, fiscalização e aplicação de medidas cautelares, corretivas e sancionatórias, nos limites do art. 71 da Constituição, independentemente de posterior ratificação pelo Poder Legislativo’ (ARE 1.436.197, trecho do voto do Rel. Min. Luiz Fux)[2]”.

Assim, segundo acertadamente concluem Dirceu Rodolfo de Melo Junior (conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco) e Daniella Isaac Machado da Silva Ezagui,depreende-se do entendimento do STJ que “os Tribunais de Contas podem exercer suas competências de fiscalização e aplicação de medidas sancionatórias sobre os atos de gestão individuais praticados pelos prefeitos, desde que não relacionados com a questão de inelegibilidade cominada de contas rejeitadas[3]”.

No último dia 14 de fevereiro, porém, teve início o julgamento da ADPF 982/PR no plenário virtual do STF.

O relator, ministro Flávio Dino, votou pela procedência da ADPF proposta pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) “para invalidar as decisões judiciais ainda não transitadas em julgado que anulem atos decisórios de Tribunais de Contas que, em julgamentos de contas de gestão de Prefeitos, imputem débito ou apliquem sanções fora da esfera eleitoral, preservada a competência exclusiva das Câmaras Municipais para os fins do art. 1º, inciso I, g, da Lei Complementar nº 64/1990, conforme decisões anteriores do STF”.

O relator propôs, ainda, a seguinte tese de julgamento:

(I) Prefeitos que ordenam despesas têm o dever de prestar contas, seja por atuarem como responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração, seja na eventualidade de darem causa a perda, extravio ou outra irregularidade que resulte em prejuízo ao erário;

(II) Compete aos Tribunais de Contas, nos termos do art. 71, II, da Constituição Federal de 1988, o julgamento das contas de Prefeitos que atuem na qualidade de ordenadores de despesas e;

(III) A competência dos Tribunais de Contas, quando atestada a irregularidade de contas de gestão prestadas por Prefeitos ordenadores de despesa, se restringe à imputação de débito e à aplicação de sanções fora da esfera eleitoral, independentemente de ratificação pelas Câmaras Municipais, preservada a competência exclusiva destas para os fins do art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/1990.

Acompanhando o relator, o ministro Alexandre de Moraes julgou procedente a demanda, “assentando a tese segundo a qual o Tribunal de Contas tem competência para promover o julgamento de atos de gestão de prefeito, atuando na qualidade de ordenador de despesa, e, contatadas irregularidades, estabelecer sanções de multa e ressarcimento ao erário”, reconhecendo, ainda, “a nulidade das decisões judiciais oriundas de Tribunais de Justiça impugnadas” na ADPF.

Até a data de publicação deste artigo, também já havia manifestado sua aquiescência ao voto do relator o ministro Luís Roberto Barroso.

Assim, caso a tese do ministro Flávio Dino se sagre vencedora, será possível afirmar com segurança que os Tribunais de Contas podem julgar as contas de gestão de prefeitos que atuam como ordenadores de despesas.

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Nóticias recentes

plugins premium WordPress