Matéria original: Conjur
No intrincado tabuleiro das relações entre o Estado e o cidadão, há momentos em que a própria ausência se transforma em discurso. A inércia administrativa, a omissão prolongada, a negligência burocrática ou mesmo a tolerância reiterada não são meros vazios do fazer público, são, antes, signos carregados de sentido, prenhes de promessas tácitas e expectativas legitimadas.
É nesse cenário que emerge o fenômeno da confiança legítima. Não se trata de mero sentimento subjetivo do cidadão, mas de uma categoria jurídica enraizada na lógica do Estado de Direito: a de que o cidadão pode, e deve, confiar na coerência, estabilidade e previsibilidade das condutas do poder público. Quando essa confiança é alimentada pelo próprio comportamento estatal, ainda que por omissão ou silêncio, ela se transforma em norma de conduta projetada no tempo, com efeitos jurídicos concretos.
A administração pública, ao tolerar uma situação de fato por longos anos, isto é, ao não exercer seu poder-dever de fiscalização, ou ao manter-se em muda aquiescência diante de práticas reiteradas, cria um campo semântico no qual o particular projeta seus atos, investimentos e expectativas. Esse silêncio institucional, longe de ser neutro, é performativo: ele diz, afirma, promete.
O poder público, até pode, e deve, desfazer os próprios enganos. Mas há instantes em que até o erro se consagra, se acomoda, se estabiliza no tempo e gera confiança.
E é então que o dever de anular se vê diante de sua própria nudez: não pode tudo, não manda em tudo, não corrige tudo [1], impondo-se a manutenção de atos que evitem lesão a terceiros de boa-fé, se anulado o ato [2]; dos atos inválidos que foram convalidados [3]; se o ato não for lesivo ao patrimônio público [4]; da anulação de ato que anulou outro ato [5], para proteção à boa-fé dos cidadãos [6] e da anulação de ato sem o contraditório, isto é, o prévio direito de se manifestar [7], que na perspectiva do direito constitucional alemão adotada pelo STF envolve o:
(a) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;
(b) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defensor a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;
c) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas”. [8]
O labirinto do conhecimento se ergue sobre signos, máscaras e verdades escorregadias, o comportamento do Estado pode originar um simulacro de legalidade que seduz o cidadão.
A ausência de repressão estatal a uma conduta acaba por sugerir, muitas vezes de forma irresistível, a sua permissividade. A confiança assim instaurada torna-se não apenas legítima, mas juridicamente protegida, invocando o princípio da segurança jurídica e a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium).
Essa lógica, no entanto, não autoriza a cristalização do erro ou a perpetuação do ilícito. A confiança protegida não é indulgência com a ilegalidade, mas salvaguarda contra a traição do próprio Estado.
Quando a administração, depois de longamente tolerar uma situação, decide por sua reversão abrupta, sem transição razoável, sem advertência prévia ou ponderação dos efeitos, incorre na mais grave das infrações: a ruptura do pacto de confiabilidade que sustenta a legitimidade do poder público.
Não há Justiça possível onde reina a arbitrariedade camuflada de legalidade [9]. O Estado, para ser digno de obediência, deve ser fiel à palavra que pronuncia, inclusive àquela que diz por gestos, silêncios e omissões.
A boa-fé objetiva, portanto, emerge como pedra angular de um Direito Administrativo que se pretende dialógico, transparente e comprometido com o cidadão. Se a Administração Pública não pode prometer tudo, ao menos deve cumprir com aquilo que ela própria, ainda que silenciosamente, fez parecer prometer: não há segurança jurídica quando o poder se esconde na aparência da legalidade.
É dizer: o respeito à boa-fé, à confiança legítima, à segurança jurídica, e às expectativas justas criadas vinculam não apenas juridicamente, mas também eticamente a administração pública, vale dizer, “a proteção da confiança constitui um dos elementos objetivos para a concretização da boa-fé. No caso, em comento, houve a quebra da confiança, ao criar junto ao segurado a falsa realidade de que o contrato de seguro estava vigente, ante a ausência de comunicação quanto ao seu término – O princípio da boa-fé resguarda as legítimas expectativas geradas em uma relação jurídica, e o eventual rompimento desta expectativa se constitui em abuso de direito, por ultrapassar os limites impostos pela boa-fé. (…)” [10].
Num mundo em que os mosteiros do saber foram substituídos pelas catedrais da burocracia, talvez o maior dos enigmas não seja decifrar a lei escrita, mas interpretar o que o Estado cala, e, no silêncio, promete.
[1] Santana, Luiz Antonio Costa de. Seguridad jurídica y Proteccíon a la Confianza. Maringá, Sinergia Casa Editorial, 2021.
[2] RJRS 112/244; RTJ 119/1176 (STF).
[3] RSTJ 24/221.
[4] RSTJ 24/221.
[5] RSTJ 53/405.
[6] TJ-PR (BDA maio/92, p. 346: Veículo com características modificadas (de álcool para gasolina; de cabine simples para cabine dupla). Previa autorização do DETRAN. Certificado de registro expedido com as modificações realizadas pelo particular. Recusa, pelo órgão público, no ano seguinte, de proceder ao licenciamento com base no princípio de que a Administração pode rever os seus atos e declará-los nulos. Não é lícito ao DETRAN proibir aquilo que conforme a lei já havia anteriormente permitido.
[7] Santana, Luiz Antonio Costa de. “Amicus Curiae”: El derecho a influir en el juicio (das Recht auf Berücksichtigung) como proyección del debido proceso legal, disponível aqui.
[8] STF, MS nº 24.268, rel. Min. Gilmar Mendes, Dj. 05/02/2004.
[9] SANTANA, Luiz Antonio Costa de. A. C. de; GOMES, R. C. D.; SANTOS, C. A. B. dos. Voluntarismo hermenêutico e desvalor da cultura nordestina pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da vaquejada. Caderno Pedagógico, [S. l.], v. 21, n. 9, p. e8463, 2024. DOI: 10.54033/cadpedv21n9-334. Disponível aqui.
[10] TJ-MG, AC 01306717920138130338, publicado em 22.08.2017.