Imagem: Youtube/Câmara dos Deputados
Brasília, 17 de junho de 2025 – Uma tensa segunda reunião extraordinária do Grupo de Trabalho (GT) da Câmara dos Deputados, destinada a discutir e elaborar uma proposta de reforma administrativa, expôs as profundas preocupações de diversas entidades representativas dos servidores públicos. A audiência, realizada em Brasília, revelou um cenário de ceticismo e alerta quanto às premissas e potenciais impactos de uma reforma que, na visão das categorias, pode desmantelar pilares essenciais do Estado e precarizar os serviços prestados à população.
Pontos de Tensão: O Que Foi Debateu e os Riscos Apontados
Apesar do exíguo tempo concedido para as falas – meros três minutos por entidade, um ponto de atrito por si só, dada a complexidade do tema –, a unanimidade das preocupações foi notável. Os representantes dos servidores demarcaram claramente as linhas vermelhas, apontando os perigos de uma reforma que não compreenda a verdadeira dinâmica e as necessidades do serviço público.
Estabilidade e Regime Jurídico Único (RJU): Garantias Essenciais em Risco
A defesa intransigente da estabilidade do servidor público foi a bandeira mais erguida. Entidades e parlamentares que as apoiam argumentaram que a estabilidade não é um privilégio corporativista, mas uma salvaguarda crucial para a imparcialidade, a continuidade das políticas de Estado e a proteção contra ingerências políticas e práticas corruptas. Sem ela, o servidor estaria vulnerável a retaliações, comprometendo sua capacidade de fiscalizar e denunciar irregularidades em qualquer nível da administração.
Em estreita conexão, a manutenção do Regime Jurídico Único (RJU) também foi um ponto nevrálgico. A potencial flexibilização ou fim do RJU foi vista como uma ameaça à coesão e à equidade nas relações de trabalho. A coexistência de diferentes regimes (estatutário, celetista, etc.) para a mesma função poderia gerar insegurança jurídica, tratamento desigual e, no limite, o colapso de regimes previdenciários próprios, além de abrir precedentes para a precarização generalizada das condições de trabalho. A história demonstra que o RJU foi uma conquista que trouxe uniformidade e profissionalização à gestão de pessoal.
Contratações Temporárias e a Precarização Silenciosa do Estado
Um dos focos de maior preocupação foi o alarmante crescimento das contratações temporárias. Dados apresentados indicam um aumento vertiginoso de 1.760% nos vínculos temporários no serviço público federal entre 2003 e 2022. As entidades denunciaram essa prática como uma forma insidiosa de minar a estabilidade e promover a precarização do serviço público. Argumenta-se que contratos temporários são insuficientes para garantir a expertise e a memória institucional necessárias para funções complexas do Estado. Mais do que isso, essa prática pode abrir portas para o clientelismo e a corrupção, ao desvincular o ingresso na carreira da meritocracia do concurso público. A menção à “pejotização” em serviços públicos reforçou o temor de um retrocesso severo nos direitos trabalhistas e na segurança jurídica dos prestadores de serviço.
O Combate à Narrativa do “Estado Inchado” e a Busca por um “Estado Melhor”
Um dos consensos entre as entidades foi a refutação da narrativa de um “Estado inchado” e a premissa de que a reforma deva focar primordialmente em cortes de gastos. Enfatizou-se que a proporção de servidores públicos no Brasil é, na verdade, inferior à média de países da OCDE, desqualificando a tese de excesso de funcionalismo. O objetivo primordial da reforma, segundo as categorias, deve ser a construção de um “Estado melhor”, mais eficiente e com maior capacidade de entrega de políticas públicas, especialmente para a população mais vulnerável, que depende integralmente dos serviços de saúde, educação e segurança. A reforma, portanto, não pode ser um mero ajuste fiscal, mas um projeto de aprimoramento que valorize o capital humano do Estado e fortaleça sua presença onde a lógica de mercado não chega.
Regulamentação da Negociação Coletiva e do Direito de Greve
A necessidade de regulamentar a negociação coletiva e o direito de greve para os servidores públicos foi um clamor recorrente. A ausência de um marco legal claro tem resultado em interpretações judiciais discricionárias, impondo multas abusivas que cerceiam o legítimo direito de reivindicação. A urgência de adesão à Convenção 151 da OIT foi citada como um passo fundamental para modernizar as relações de trabalho no setor público e garantir um ambiente de diálogo e respeito entre governo e servidores.
Avaliação de Desempenho: Entre a Modernização e o Assédio
Apesar de não serem contrárias à avaliação de desempenho, as entidades manifestaram sérias preocupações com os riscos de sua aplicação como ferramenta punitiva, sem critérios objetivos e transparentes. O temor é que a avaliação se transforme em um instrumento de assédio moral e perseguição, comprometendo a saúde mental dos servidores e a própria efetividade do processo. O foco, defendeu-se, deveria ser na promoção de boas práticas e no desenvolvimento profissional, e não na busca por demissões arbitrárias que desestabilizariam a força de trabalho.
O Verdadeiro Desafio Fiscal: Super Salários e Tributação Injusta
Em um raro ponto de convergência com alguns parlamentares, a crítica aos “supersalários” e às indenizações que burlam o teto constitucional foi reiterada. No entanto, as entidades foram além, destacando que o verdadeiro problema fiscal do país reside na tributação injusta, que isenta o 1% mais rico da população, e no peso dos juros da dívida pública no orçamento, que consomem uma fatia muito maior de recursos do que os gastos com o funcionalismo. Para as categorias, a reforma deveria mirar nos privilégios e na equidade tributária, e não na precarização da base do serviço público.
Próximos Passos: Vigilância Ativa e Demanda por Diálogo Ampliado
O compromisso do coordenador do GT, deputado Pedro Paulo, em realizar mais uma audiência pública com os servidores foi um reconhecimento da pressão e da pertinência dos argumentos apresentados. Ele garantiu que o GT continua recebendo sugestões por escrito das entidades e que todo o material está sendo disponibilizado publicamente.
As próximas audiências públicas já agendadas abordarão outros setores:
- 1º de julho (manhã): Representantes de academias e universidades (públicas e privadas).
- 1º de julho (tarde): Entidades do sistema de justiça.
- 2 de julho (manhã): Representantes de governos estaduais e municipais, com a presença da Ministra da Gestão.
Embora o relatório final do Grupo de Trabalho esteja previsto para 14 de julho, o coordenador enfatizou que a entrega do documento não encerrará o debate. As propostas legislativas resultantes do GT iniciarão um novo ciclo de tramitação no Congresso, oferecendo novas oportunidades para discussões e aprimoramentos.
Este debate sobre a reforma administrativa se configura como um dos mais cruciais para o futuro do Estado brasileiro. As vozes dos servidores, com sua experiência e conhecimento do dia a dia da máquina pública, atuam como um contraponto essencial às narrativas simplistas, buscando garantir que a modernização não se traduza em desmonte e que o serviço público continue sendo o alicerce fundamental para o desenvolvimento e a justiça social no país. A vigilância e a mobilização das categorias serão decisivas nos próximos capítulos desta discussão.