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A conspiração dos néscios e as cinco leis fundamentais da estupidez

  • 24 de setembro de 2020

1.A epistemologia dos néscios
Mauro Mendes Dias é um psicanalista deveras interessante. Acaba de lançar o livro “O discurso da estupidez”. É uma espécie de manual para aprender a detectar as estultices.

Ele mostra que a estupidez não é autoengendrada. Isto porque, de um lado, ela não é sem causa; de outro, ela mantém relação com o tipo de ação da verdade que emerge parcialmente nela.

Qual verdade? Aquela que metamorfoseia em certeza. Como uma aparição do além-túmulo, ela nos faz lembrar a função que cumpre o fantasma do pai morto para Hamlet, no início da peça de Shakespeare.

Assim, tendo o sujeito se ensurdecido para qualquer tipo de dúvida ou objeção, deixa-se conduzir por uma missão que clama por vingança. Diferentemente do gesto de Ulisses na Odisseia, o tapar de ouvidos aqui é condição para o sucesso de viagem em direção às rochas da estupidez, as quais não provocam a morte dos passageiros, mas sim a sua proliferação.

A estupidez não precisa de teste, verificação e fundamento, diz Mauro.

2.A epistemologia da estultice — curas e quejandices
Olhando em volta, vê-se coisas que se enquadram nessa “epistemologia da estultice”, como gente acreditando que, orando, a Covid desaparece. Aliás, uma igreja catalogou até a semana passada — eu vi — 13.000 curas da Covid. A mesma igreja cura hemorroidas, segundo disse o missionário na pregação do dia 22 último. Bom, de qualquer modo, a estultice não está em quem prega — isso é malandragem —, e, sim, está em quem acredita. Claro que esse fenômeno é também uma metáfora da sociedade.

Também há bons exemplos em negacionismos como “não há aquecimento global”, gente que embarca no senso comum de que, afinal, ainda cai neve no mundo. Logo, não há aquecimento. Cogito, ergo estupidus.

Queimadas na Amazônia ou Pantanal? Conspiração. Claro. Está na cara. Tudo é montagem. Na verdade, os animais calcinados são apenas imagens de filmes. Isso non ec-xiste, Padre Quevedo.

Ah, esses malditos índios e caboclos botando fogo nas florestas... Essa gente não tem senso de patriotismo? Querem destruir o meio-ambiente? Isso tem de ter um fim (selo LLS de ironia!)

3.E um radialista histérico pegou Covid... dizendo que “isso não existe”
Outro dia ouvi um sujeito em uma rádio falando contra fake news. Vociferava. Histérico. Interessante. Ele mesmo, minutos antes, falava, com convicção, que os incêndios eram invenções e exageros. Sim, de verdade. O sujeito, embarcado na nau da insensatez e da estupidez, falava contra o que acabara de fazer. Mais: falava que Covid era bobagem. E foi para o hospital. Pegou o bicho. Esse radialista é o paradoxo do sujeito que faz fake news para reclamar das fake news. Fake news são as news dos outros — esse é o critério de veracidade. O subjetivismo, o emotivismo, nossa metaética que é mais meta do que ética — sem epistemologia — esculpida em carrara: o critério de objetividade é aquilo que quero que seja.

E assim a nave vai. O primeiro best seller depois da Bíblia foi o livro A Nau dos Insensatos, traduzido para 34 línguas. Escrito em 1494. Sim, 1494. Mas dizem que já tem gente revisando a obra de Sebastian Brant.

Agora, o livro de Mauro Mendes Dias fala dos “neoinsensatos”, em seu magnifico “Discurso da Estupidez”. Permito-me ainda acrescentar: tudo isso só funciona porque existe o Discurso da Servidão Voluntária, escrito por um jovem. Nos anos 60 do século XVI. E a nave vai. Isso é antigo. Bom, espero que o Étienne de La Boétie não seja cancelado. Vá que...

4.Fumaça, fogo, cancelamentos... e quem será o próximo? Aristóteles?
Onde há fumaça, há fogo? Depende, diria um cético pós-moderno (ups: ceticismo lembra Hume e este está condenado, ao lado de Voltaire, cuja estátua foi derrubada; logo Voltaire, hein, o cara citado todo o tempo como o “cara da tolerância”; logo, vem a derrubada da estátua de Aristóteles; bom, a Bíblia será banida — o velho testamento então...; sugiro para essa gente que quer derrubar estátuas uma leitura de Gadamer, quem disse que a distância temporal é, antes de tudo, um aliado e não um inimigo — o problema é: quem vai explicar Gadamer para eles?)

E quando acharem uma nota de rodapé para ‘cancelar’ Gadamer também? E quando os canceladores resolverem cancelar a civilização? Ups. Paradoxo da tolerância. E não é aquele de que falava o Popper — deve ter algo para ser cancelado também. Já sei, gostava do Churchill, que já teve estátua derrubada — também está lascado. Veja-se que estultices não tem ideologia. São de todos os “lados”.

Hume, Voltaire... Pois é. Qual é o sentido disso? Qual é a diferença com terraplanismo? Um terraplanismo às avessas?

Por aqui, o governo está reescrevendo as histórias dos Irmãos Grimm. João e Maria não foram abandonados. Sua mãe lhes ensinou o caminho das pedras... (ver aqui). Quer dizer: Por que no se callan?

Sigo. Mas se a fumaça for algo que cheira a queimado e que vem de uma floresta, ainda assim não é sinal de fogo? “— Capaz, isso é tudo mentira. Só serve para ‘denegrir’ nossa imagem”.

Nota: a palavra “denegrir” deveria, aí sim, ser cancelada, para usar a palavra da moda. Como dizia John Austin, é possível fazer coisas com palavras. É o caráter perlocucionário da linguagem. Captou, caro leitor?

5.O negacionismo jurídico e as cinco leis da estupidez comentadas artigo por artigo
Sigo um pouco mais, para falar sobre o negacionismo e a epistemologia da estupidez na área jurídica. O interessante é que não há organização dos estultos. Mas parece haver uma mão invisível que os organiza, como lembra Carlo Cipolla, no livro Allegro, ma non tropo, uma sátira sobre a estupidez. A mão invisível do mercado da estupidez. Cipolla nos brinda com uma epistemologia dos néscios (a expressão é por minha conta), mostrando as cinco leis fundamentais, que já adapto para o direito:

1. Sempre e inevitavelmente, cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos que circulam pelo mundo jurídico.

Com efeito, ao ver advogados fazendo publicidade com TikTok e professores “ensinando” cantando funk e alunos e profissionais estudando por resumos e resuminhos, essa primeira lei passa pela CHS (condição hermenêutica de sentido). Está demonstrada todo dia. Quod erat demonstrandum constante.

2. A probabilidade de que uma determinada pessoa formada em direito seja estúpida é independente de qualquer outra característica da mesma pessoa.

De fato, essa segunda lei também é verificável, já que nas diversas camadas da área jurídica, a distribuição do IE — índice de estupidez é quase igual. Nesta época de pandemia isso fica mais visível. Basta uma olhada rápida no mundo das lives. Todo mundo virou “artista”, com o que todos gatos se tornaram pardos. Interessante é que a febre das lives é mais visível no Direito. Por que será? Daqui a pouco, teremos uma grande live sobre lives — e ninguém a assistirá, pois estarão todos gravando uma live. A Grundlive. Grupos de whatsapp não escapam dessa fenomenologia. As neocavernas desafiam o desgosto de Platão.

3. Uma pessoa estúpida — mormente se tiver formação jurídica (porque são muitos) — é aquela que causa dano a outra pessoa ou grupo sem, ao mesmo tempo, obter um benefício para si mesmo ou mesmo causar prejuízo.

Perfeito. Cipolla não considerou a estupidez como uma questão de quociente intelectual, mas sim uma falta de inteligência relacional. Ele parte da ideia de que, ao nos relacionarmos uns com os outros, podemos obter benefícios e proporcionar benefícios aos outros ou, pelo contrário, podemos causar danos ou prejudicar os outros. Mas no Direito não é assim.

Uma pessoa estúpida é aquela que prejudica os outros e muitas vezes também ela mesma. Basta ver nas redes sociais. Se você posta algo sofisticado, o estúpido (mormente o formado em direito) vem e faz como o pombo no jogo de xadrez: esculhamba as pedras e faz cocô no tablado. E sai dizendo que venceu. De peito estufado. Orgulhoso de sua vencedora estupidez.

Por que um néscio quer esculhambar o discurso que ele não entende ou nunca se esforçou para entender? Por que ele só usa livros resumidinhos e resumos dos resumos? Ou seja, está comprovada a terceira lei: o néscio não se importa com soma zero. Segundo Cipolla, há ainda o supernéscio: aquele que esculhamba os não-néscios e ainda se prejudica, sendo processado pelo que postou. Ou seja, só prejuízo.

4. Juristas não-estúpidas sempre subestimam o potencial prejudicial de estúpidos.

Essa quarta lei de Cipolla é autoexplicativa. Por vezes, eles atacam à socapa e à sorrelfa. E nem conseguimos reagir. Estupefatos com a estupidez dos estúpidos.

5. O estúpido (ou néscio) é o mais perigoso.

Por último, a quinta lei é autoaplicável. Como diz Cipolla, “Todos os seres humanos estão incluídos em quatro categorias fundamentais: o desavisado, o inteligente, o malvado (ou ladrão) e o estúpido. De onde: (i) A pessoa inteligente sabe que é inteligente; (ii) o malvado está ciente de que ele é mau; (iii) o desavisado é dolorosamente imbuído do senso de sua própria sinceridade e, (iv) ao contrário de todos esses personagens, o estúpido não sabe que é estúpido. Ele não sabe que não sabe.

Como acentua Cipolla, isso de não saber que não sabe (essa parte é minha) contribui para dar maior força, incidência e eficácia à sua ação devastadora. Aqueles que sabem que não sabem estão perdidos, entre todos aqueles que acham que sabem que sabem, aqueles que sabem que não sabem mas fazem mesmo assim — razão cínica — e aqueles que não sabem que não sabem e não querem saber que não sabem tudo aquilo que não sabem e nem querem saber.

Ufa. Enfim, não inventei as cinco leis. Foi Cipolla. E Mauro Mendes Dias as aperfeiçoou.

Na próxima coluna, se não ocorrer alguma grande estupidez que demande outro texto, escreverei acerca de como se proteger da estupidez jurídica, na esteira de Cipolla e Matthijs Van Boxsel — grande enciclopedista da estupidez —, tudo muitíssimo bem trabalhado no site Rincón de Psicologia, a quem agradeço desde já.

Saludo! E não briguem com o mensageiro. Os descontentes devem brigar com Cipolla e Dias.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados

FONTE: Revista Consultor Jurídico

   
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